23.11.12

Literatura Brasileira III: exercício de revisão comentado



Literatura Brasileira IIIExercício de Revisão


  1. Relacione os aspectos indicados nos textos abaixo com a produção literária de Lima Barreto e Euclides da Cunha (estilo, gênero e tópicos temáticos):

Texto 1:
O Brasil é mais complexo, na ordem social econômica, no seu próprio destino, do que Portugal.
A velha terra lusa tem um grande passado. Nós não temos nenhum; só temos futuro. E é dele que a nossa literatura deve tratar, da maneira literária. Nós nos precisamos ligar; precisamos nos compreender uns aos outros; precisamos dizer as qualidades que cada um de nós tem, para bem suportarmos o fardo da vida e dos nossos destinos. Em vez de estarmos aí a cantar cavalheiros de fidalguia suspeita e damas de uma aristocracia de armazém por atacado, porque moram em Botafogo ou Laranjeiras, devemos mostrar nas nossas obras que um negro, um índio, um português ou um italiano se podem entender e se podem amar, no interesse comum de todos nós.
A obra de arte, disse [Hippolyte] Taine, tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem. Eles estão aí, à mão, para nós fazermos grandes obras de arte.
[...]
Hoje, quando as religiões estão mortas ou por morrer, o estímulo para elas é a arte. Sendo assim, eu como literato aprendiz que sou, cheio dessa concepção, venho para as letras disposto a reforçar esse sentimento com as minhas pobres e modestas obras.
O termo "militante" de que tenho usado e abusado, não foi pela primeira vez empregado por mim.
O Eça [de Queiroz], por quem não cesso de proclamar a minha admiração, empregou-o, creio que nas Prosas Bárbaras, quando comparou o espírito da literatura francesa com o da portuguesa.
Pode-se lê-lo lá e lá o encontrei. Ele mostrou que desde muito as letras francesas se ocuparam com o debate das questões da época, enquanto as portuguesas limitavam-se às preocupações da forma, dos casos sentimentais e amorosos e da idealização da natureza Aquelas eram – militantes, enquanto estas eram contemplativas e de paixão.
(Lima Barreto, “Literatura Militante”. In: _____. Impressões de leitura, p. 72-3).

Texto 2:


[...] Num ponto apenas vacilo – o que se refere ao emprego dos termos técnicos. Aí, a meu ver, a crítica não foi justa. / Sagrados pela ciência e sendo de algum modo, permita-me a expressão, os aristocratas da linguagem, nada justifica o sistemático desprezo que os homens de letras – sobretudo se considerarmos que o consórcio da ciência e da arte, sob qualquer de seus aspectos, é hoje a tendência mais elevada do pensamento humano. / Um grande sábio e um notável escritor, [Marcellin] Barthelot, definiu, fazem poucos anos, o fenômeno, no memorável discurso com que entrou na Academia Francesa. / Segundo se colhe de suas deduções rigorosíssimas, o escritor do futuro será forçosamente um polígrafo; e qualquer trabalho literário se distinguirá dos estritamente científicos, apenas, por uma síntese mais delicada [...].
(Cunha, Euclides da. “[Carta] A José Veríssimo”, In: _____. Obra completa, vol. II, p.653)


2.      Considerando ainda os aspectos desenvolvidos nos dois textos da questão anterior, leia e analise o poema que segue, de Augusto dos Anjos, procurando localizar a obra poética do poeta paraibano no momento pré-modernista brasileiro.

APOCALIPSE

Minha divinatória Arte ultrapassa
Os séculos efêmeros e nota
Diminuição dinâmica, derrota
Na atual força, integérrima, da Massa.

É a subversão universal que ameaça
A Natureza, e, em noite aziaga e ignota,
Destrói a ebulição que a água alvorota
E põe todos os astros na desgraça!

São despedaçamentos, derrubadas,
Federações sidéricas quebradas...
E eu só, o último a ser, pelo orbe adiante,

Espião da cataclísmica surpresa,
A única luz tragicamente acesa
Na universalidade agonizante!


  1. A partir da leitura comparativa dos textos abaixo, caracterize o momento literário do pré-modernismo, indicando temas fundamentais, escolhas formais e feições estilísticas. Exemplifique com partes dos textos apresentados.

Texto 1:
O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo – cai é o termo – de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.
É o homem permanentemente fatigado.
Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.
Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.
Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Impertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.
Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento, em todos os pormenores da vida sertaneja – caracterizado sempre pela intercadência impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas.
É impossível idear-se cavaleiro mais chucro e deselegante; sem posição, pernas coladas ao bojo da montaria, tronco pendido para a frente e oscilando à feição da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Nesta atitude indolente, acompanhando morosamente, a passo, pelas chapadas, o passo tardo das boiadas, o vaqueiro preguiçoso quase transforma o campeão que cavalga na rede amolecedora em que atravessa dois terços da existência.
Mas se uma rês alevantada envereda, esquiva, adiante, pela caatinga garranchenta, ou se uma ponta de gado, ao longe, se trasmalha, ei-lo em momentos transformado, cravando os acicates de rosetas largas nas ilhargas da montaria e partindo como um dardo, atufando-se velozmente nos dédalos inextricáveis das juremas.

Texto 2:
O Lázaro da Pátria


Filho podre de antigos Goitacases,
Em qualquer parte onde a cabeça ponha,
Deixa circunferências de peçonha,
Marcas oriundas de úlceras e antrazes.

Todos os cinocéfalos vorazes
Cheiram seu corpo. À noite, quando sonha,
Sente no tórax a pressão medonha
Do bruto embate férreo das tenazes.

Mostra aos montes e aos rígidos rochedos
A hedionda elefantíase dos dedos...
Há um cansaço no Cosmos... Anoitece.

Riem as meretrizes no Casino,
E o Lázaro caminha em seu destino
Para um fim que ele mesmo desconhece!



4.       Caracterize a literatura produzida no Brasil no momento pré-modernista (nos dois sentidos referidos por Alfredo Bosi), fazendo referência a um escritor que você considere encarnar os traços marcantes do período. Indique autores e obras.
  
5.       Explique a seguinte afirmação de Alfredo Bosi, não esquecendo de dar exemplos que ilustrem sua exposição: “Sem forçar contrastes (e excetuando sempre a obra de Augusto dos Anjos), será lícito dizer que a poesia representa, no primeiro vintênio do século, o elemento conservador de motivos e formas, ao passo que a prosa de ficção preludia, em seus melhores representantes, os interesses da geração de 22 e, em particular, dos anos 30.” (O Pré-Modernismo, p. 55).



Comentários:
1. Os textos que compõem a questão 1 evidenciam posturas intelectuais e/ou artísticas que marcaram o período pré-modernista.São posturas diametralmente opostas, entre as quais cabe um sem-número de variações no modo de participar da vida cultural do início do século XX. As duas posturas extremas são as seguintes: a produção literária entendida como "sorriso da sociedade", como a chamou Afrânio Peixoto, literatura ornamental e hedonista, que passava ao largo das questões candentes da época, todas elas compondo a problemática das questões sociais ("a era, que se abre, é a era da questão social", diria Rui Barbosa, figura importante do período); e, do outro lado, a "literatura militante", como pregava Lima Barreto (utilizando-se de expressão inicialmente usada por Eça de Queiroz), postura engajada no tratamento das questões sociais, a compreensão da "literatura como missão" (expressão que intitula livro de Nicolau Sevcenko sobre o período). Lima Barreto foi ficcionista engajado, poderíamos dizer, que com suas "pobres e modestas obras" colocou em cena os vícios de uma sociedade sempre pronta a renovar na manutenção das desigualdades socioculturais. Sobre M. J. Gonzaga de Sá, quarto romance de Lima Barreto, disse Alfredo Bosi que "constui [...] a mais curiosa síntese de documentário e ideologia que conheceu o romance brasileiro antes do Modernismo"; e acrescenta, referindo-se ao protagonista do romance: "Gonzaga de Sá vem a ser o espectador a um tempo interessado e cético daquele Rio dos princípios do século, onde os pretensos intelectuais macaqueavam as ideias e os tiques da cultura francesa sem voltar os olhos para os desníveis dolorosos que gritavam ao seu redor; onde a Abolição, sem realizar as esperanças dos negros, prolongou as agruras dos mestiços; onde, enfim, a República, em vez de preparar a democracia econômica, instalou solidamente os oligarcas do campo estribando-os no tripé de uma burocracia alienada, um militarismo estreito e uma imprensa impotente, quando não venal". O romance de Lima Barreto oscilou entre o fundamento pessoal e o painel social, em que realismo e memorialismo depõem o tom estilístico; o espaço literário de Lima Barreto, o espaço que constitui sua fundamentação narrativa, foi o espaço urbano carioca, com o entusiasmo dos que acreditavam no lema governamental do momento -- "O Rio civiliza-se" -- a sufocar o lamento dos desfavorecidos, colocados à sombra do processo civilizatório de então; o trecho seguinte, em que fala o próprio Gonzaga de Sá (e Lima Barreto fala através dele), é sugestivo quanto à temática barretiana: "A nossa emotividade literária só se interessa pelos populares do sertão, unicamente porque são pitorescos e talvez não se possa verificar a verdade de suas criações". Já Euclides da Cunha, que compartilha com Lima Barreto a ideia de uma "literatura como missão", não empunhou como arma de combate a ficção: "me desviei sobremodo dessa literatura imaginosa, de ficções, onde desde cedo se exercita e revigora nosso subjetivismo", iria depor Euclides. Sobre sua obra mais contundente, Os Sertões, reflete Antonio Candido: "Livro posto entre a literatura e a sociologia, Os sertões assinalam um fim e um começo: o fim do imperialismo literário, o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira (no caso, as contradições contidas na diferença de cultura entre as regiões litorâneas e o interior". Quanto aos gêneros literários manejados por Euclides, é esclarecedora a indicação de Nicolau Sevcenko, apontando para a distribuição de sua obra em cinco gêneros: "historiografia, geografia, crônica, epistolografia e poesia, versadas em estreito consórcio com o comentário científico". Espécie de ensaio literário portanto, em que um "estilo elevado híbrido" se forja (na expressão de Sevcenko, mais uma vez), e que se fundamenta na noção de escritor polígrafo, ou seja, o escritor com domínio enciclopédico de variados saberes científicos que não abdica da expressão literária rebuscada e artística. Estilo que foi chamado de "barroco científico", e que Gilberto Feryre comentaria ao reparar "na sua adjetivação quase sempre crespa, estridente, mais aguda que grave; nas suas mais repetidas procuras ou recorrência de efeitos teatralmente musicais".

2. Recordo a descrição do poeta paraibano traçada por seu amigo Orris Soares: "um pássaro molhado, todo encolhido nas asas, molhado de chuva" -- que por sua vez remete a "O Albatroz", de Charles Baudelaire, retrato do poeta, tipo generalizado, entre os fins do século XIX francês e o início do XX brasileiro. Essa recordação desdobrada vem a propósito da leitura de "Apocalipse", poema de Augusto dos Anjos e texto para análise da questão 2. "Apocalipse", que em sentido etimológico equivale "ato de descobrir, descoberta, revelação", é uma espécie de profissão de fé do poeta do Eu (1912), ou seja, a declaração dos seus pricípios poéticos/estéticos. Nele o poeta contempla sua própria arte, sua "divinatória Arte",  em relação monista com a "Natureza", também chamada de "Massa", em que ele, o próprio poeta, é "A única luz tragicamente acesa". Mas vamos por partes, e tomemos o dito até aqui por introdução. Primeiramente caberia o comentário sobre o aspecto formal do poema, significativo para compreendermos não apenas a poética de Augusto dos Anjos como também as concepções poéticas do tempo, ainda tão marcadas pelo arraigado gosto parnasiano. O poeta abedece ao padrão tradicional do soneto italiano (ou petrarquiano), desdobrado em dois quartetos e dois tercetos. O verso utilizado é o decassílabo, metro consagrado na tradição do soneto em língua portuguesa. Segundo Alfredo Bosi, Augusto dos Anjos "é um poeta eloquente. O dramático de suas tensões, que às vezes tende para o trágico do inelutável, encontra forma ideal em quartetos decassílabos fortemente cadenciados, em que são copiosos os versos sáficos [decassílabo com tonicidade na 4a, 8a e 10a sílabas], de manifesta sonoridade, as rimas ricas e as palavras raras e esdrúxulas". Assim como Euclides da Cunha, desenvolve uma "adjetivação frequentemente crespa" (expressão de Gilberto Freyre), composta por vocabulário marcado pela ênfase dramática e pela perspectiva do monismo. O eu lírico do "Apocalipse", como não poderia deixar de ser, é personagem enfaticamente dramático, e surge já no pórtico do poema, apontando para o caráter de sua arte: "Minha divinatória Arte ultrapassa/ Os século efêmeros"; ou seja, a Arte deste eu apocalíptico é escatológica ("doutrina que trata do destino final do homem e do mundo", na definição de Houaiss); ela ultrapassa as contingências do tempo e, simultaneamente, observa a fatalidade da desintegração final de todas as coisas do universo ("nota/ Diminuição dinâmica, derrota/ Na atual força, integérrima, da Massa"). Aliás, ao falar de "força, integérrima, da Massa", o poeta revela seu monismo, considerando a organização cósmica como consequência de uma única força universal. Força que aliás sofre pela "subversão universal que ameaça/ A Natureza"; esta "subversão universal" desvirtua tanto a ebulição da água quanto "põe todos os astros na desgraça". Poderíamos dizer que, neste segundo quarteto, há uma correspondência caótica entre todas as coisas, que nos faz pensar nas "Correspondances" baudelaireanas, mas em plena configuração degenerativa. No primeiro terceto, é sensível o uso de uma sonoridade expressiva, através de um ritmo cadenciado e do uso de aliterações; reparem que os dois primeiros versos deste primeiro terceto alternam a sonoridade das consoantes d e s, figurando sonoramente a ideia de desintegração geral; curiosidade especial é o uso, nesses mesmos versos, da expressão "Federações sidéricas quebradas", que mistura vocabulário da cosmologia (sidérica) e da política (federações, que pode nos fazer pensar também na República brasileira do começo do século XX); ressalte-se o uso das reticências, pontuação típica da poética simbolista, que suspende a sequência semântica do verso e sugere aspectos não verbalizados; e, para encerrar este primeiro tercerto, a presença novamente dramática, em desesperada gesticulação teatral, do eu lírico (E eu só, o último a ser, pelo orbe adiante"). No último terceto, o eu escatológico de "Apocalipse" denuncia sua desgraça, a de ser "Espião da cataclísmica surpresa/ A única luz tragicamente acesa/ Na universalidade agonizante!"; o "Apocalipse" que o poeta testemunha, portanto, seria processo contínuo e perpétuo, visível somente àquele que é "A única luz tragicamente acesa"; o último verso evidencia por fim a dialética dramática entre eu e cosmos, o que poderíamos chamar de "a cosmo-agonia de Augusto dos Anjos", na expressão de Lúcia Helena.

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