10.11.12

Leminski lê os sertões


Sertões Antieuclideanos


nenhum livro
teve sobre a cultura brasileira letrada
o impacto de "os sertões"

com ele
euclides da cunha
militar
engenheiro
positivista como toda a oficialidade
republicana
traumatizou
uma literatura feita por bacharéis
ornamental
"sorriso da sociedade"
brilho dos salões do segundo império
a leitura para ioiôs e iaiás
surto de espinhas no rosto imberbe dos
acadêmicos de direito
ócio de aposentados
prenda doméstica
da elite de um país de analfabetos
com ele
um brasil outro
um brasil novo
o brasil verdadeiro do interior
saltava na cara das nossas elites letradas
concentradas nas cidades
no eixo rio-são paulo
centrífugas
europocêntricas
produzindo uma literatura francesa no trópico
para branco ver

canudos foi uma revelação
o despertar da consciência brasileira
o satori nacional
um acontecimento histórico de muitas 
consequências
das quais a mais importante
um livro chamado "os sertões"

dele descendem
"macunaíma"
"vidas secas"
"o tempo e o vento"
toda nossa prosa regionalista
até o sertão máximo
"grande sertão: veredas"
onde o gênio de guimarães rosa
dá ao sertão uma dimensão cósmica
num texto rico como os de joyce
encerrando com chave de ouro
o ciclo mais fecundo da literatura brasileira

o texto de "os sertões"
tem uma história
uma biografia essencial
para a compreensão do livro

nasceu das anotações
do engenheiro militar euclides da cunha
jornalista correspondente de "o estado de são paulo"
no próprio local das operações da guerra
jagunços e fanáticos de antônio
conselheiro
contra as tropas da república

das anotações às reportagens
e destas ao texto final de "os sertões"
um longo percurso textual
onde euclides apostou tudo que tinha
preparo científico
perícia de linguagem
e maestria dos recursos estilísticos da 
língua

o retorcido 
o tortuoso
o barroco positivista de euclides
"estilo de cipó"
é prosa em drama
isomórfica com o drama que presentifica
discurso deformado e informado pelo assunto

o impacto que canudos provocou em euclides
não foi apenas histórico
geográfico
sociológico
foi também semiótico/poético
de linguagem
em canudos
euclides descobriu a fala natural do sertão
a linguagem popular
"errada"
antinormativa
uma linguagem
cheia de giros próprios
dizeres e falares jagunços
muito distantes do"sermio nobilis" da capital

este impacto
escapou aos exegetas de euclides

a revelação da linguagem dos sertões
está documentada
na "caderneta de campo" de Euclides
caderno de bolso editado recentemente
pela cultrix
nascedouro de "os sertões"
onde euclides fazia anotações de geografia
geologia
operações militares
episódios e incidentres de guerra

muitas folhas do "caderno"
estão juncadas de listas de palavras e
expressões que Euclides
ouvia na boca da jagunça do 
povo
linguagem/poesia viva
explodindo em seus tímpanos civilizados

algumas dessas expressões
verdadeiros fósseis
palavras e giros arcaicos
mantidos no isolamentodo sertão
uma volta ao passado da língua

euclides recolheu no "caderno"
poemas populares
como o "abc da incredulidade"
cordel de guerra
de um homero anônimo
onde a crueza das idéias e expressões
se expressa em bárbara ortografia

o código ortográfico
constitui a primeira camada protetora da
lígua dominante
sua primeira linha de defesas
muralha da china contra a invasão do 
popular
do poético
do novo

euclides
perante a tortografia social
psicológica
lingüística
faz uma viagem psicanaítica ao passado
do Brasil
e dá
nome ao nosso mal

ele se chama alienação

nenhuma paideuma brasileira
(escolha de um elenco de autores vitais)
que deixe fora "os sertões"
pode se pretender completa
com ele
o euclidiano (matematicamente falando)
euclides
descobre o avesso
antieuclidianamente

e nos descobre.
 
 
[Leminski, Paulo. Ensaios e anseios crípticos. Campinas: Unicamp, 2011, pp. 285-290] 

Um comentário:

Anônimo disse...

Fantástico !