30.10.12

Machado traduzindo Poe: "O Corvo"


O CORVO
(EDGAR ALLAN POE)

Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora.
E que ninguém chamará mais.

E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto, e: "Com efeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais."

Minh'alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: "Imploro de vós, — ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso
Batestes, não fui logo, prestemente,
Certificar-me que aí estais."
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro coa alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma cousa que sussurra. Abramos,
Eia, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso,
Obra do vento e nada mais."

Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo, — o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "O tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Cousa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: "Nunca mais".

No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora."
E o corvo disse: "Nunca mais!"

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: "Nunca mais".

Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais".

Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranqüilo a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."
E o corvo disse: "Nunca mais".

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais,
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”
E o corvo disse: "Nunca mais".

“Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fique no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua.
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
E o corvo disse: "Nunca mais".

E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e, fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!


[Tradução Machado de Assis]

29.10.12

de Paul Valéry para este Palhaço


Um homem sério tem poucas ideias. 
Um homem de ideias nunca é sério.

[Paul Valéry]



O Augusto dos Anjos que poderia ter sido...


Na sua Apresentação da poesia brasileira, Manuel Bandeira especula sobre o que seria a expressão de um Augusto dos Anjos maduro, se acaso vivesse para além dos trinta anos que o levaram de volta para a "pátria da homogeneidade" (ver "Debaixo do Tamarindo"). Reparem o comentário sobre a expressão do poeta paraibano, que em trecho anterior Bandeira chamara de "uma expressão por estampidos", assim como a comparação com a prosa impetuosa de Euclides da Cunha.

       "Augusto dos Anjos morreu aos trinta anos. Não creio, porém, que, se vivesse mais, atenuasse as arestas de sua expressão formal. Esta lhe era congênita e persistiria sem dúvida, como persistiu na maturidade de Euclides da Cunha, em cuja prosa deparamos com o mesmo ímpeto explosivo e indomável."

[Bandeira, Manuel. Apresentação da poesia brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 146]

27.10.12

As fases do Bruxo: Machadinho e Machadão



       "Entre ontem e hoje, entre Machadinho e Machadão, cabem todas as fantasias do devir que está sendo e ainda não é. Mas que microscopia imaginativa poderá acompanhar os estádios sucessivos, as mutações sutis de uma gestação psicológica, manifestada de súbito sob a forma de conversão? Se pudéssemos aplicar ao caso aqueles processos de linguagem que, aos olhos iludidos do espectador, conseguem recompor num tempo ideal a germinação e o desenvolvimento das plantas, veríamos que o autor da Queda [texto escrito por Machado em 1861], o esforçado não-me-toques da primeira fase criar aos poucos não sei que raízes e tentáculos, como estranha planta humana, e num retrato mágico, firmar-se a expressão do lábio, endurecer o brilho dos olhos, vincar-se o desenho inseguro de uma ruga, a 'ruga sardônica' de Luís Garcia. Insensivelmente, passaríamos do primeiro ao segundo Machado de Assis."

[Meyer, Augusto. "Uma cara estranha". In: _____. Machado de Assis (1935-1958). Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, p. 159. Na caricatura acima, publicada no jornal O Globo, o jovem Machado de Assis esculpe uma figura de mulher, alusão a seu romance Helena, também publicado nas folhas daquele jornal.]

25.10.12

Aos alunos de Literatura Brasileira II

Venho desculpar-me pela ausência nas aulas de hoje, pelo que me justificarei pessoalmente no próximo encontro, na terça da semana vindoura (29/10). Passara bom tempo em conluio com meu bom Machadinho  (!), para conversa sobre as narrativas curtas que ele com mestria elaborou, mas motivo de força maior me desviou o caminho.
Por agora, a explicação é sobre o material que utilizaremos nas próximas aulas, as dedicadas a Machado de Assis. Como não houve ainda aula dedicada ao conto machadiano, faremos isso na próxima terça (29/10): faremos uma leitura do conto "Um homem célebre" e, a partir dele, iremos em busca das caracteres fundamentais que Machado deu a suas narrativas curtas; e dela passaremos à crônica, fazendo a leitura de duas delas que estão estampadas no livreto O jornal e o livro, que são as seguintes: "O jornal e a crônica" e "Aquarelas".
Lembro que todos os textos referidos podem ser encontrados em machado.mec.gov.br.

23.10.12

Coleção Digital Machado de Assis


A obra de Machado de Assis está disponível, em edição confiável e gratuita, aos usuários da internet. A coleção digital resulta da parceria entre o Portal Domínio Público (a bilioteca digital do MEC) e o Núcleo de Pesquisa em Informática, Literatura e Linguística, da Universidade Federal de Santa Catarina. Seu lançamento fez parte das homenagens ao escritor no centenário de sua morte, em 2008.
 machado.mec.gov.br/

Jorjamado em novas capas

Creio já ter postado neste picadeiro uma nota sobre O país do carnaval, primeiro livro de Jorge Amado, de 1931. O centenário do escritor baiano promoveu merecidos festejos, e entre eles a nova edição de todos os romances, preparada pela Companhia das Letras. Beleza à parte é o projeto gráfico de todos eles. O país do carnaval traz capa em que se estampa uma fotografia de Pierre Verger, intitulada Frevo (Recife, 1947). Confira como ficou a capa em http://www.jorgeamado.com.br



20.10.12






 A fotografia acima, de Marc Ferrez, foi feita em 1895, e retrata jornaleiros da Capital Federal, que pouco depois sofreria grandes transformações, buscando igualar-se aos padrões das grandes metrópoles civilizadas. É imagem sintomática de uma época de contrastes cruciais de nossa formação como nação moderna.

Literatura Brasileira II: pra começo de conversa...

Pra começarmos o semestre, trouxe para as turmas de Literatura Brasileira II um poema de Machado de Assis, que suscita a reflexão sobre aspectos importantes da cultura científica e literária do final do século XIX, assim como acusa algumas dos desenvolvimentos temáticos que o "Bruxo do Cosme Velho" (epíteto de Machado). Abaixo transcrevo os versos referidos, e em seguida trechos de comentários sobre os mesmos.



Uma Criatura

Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas
Com a sofreguidão da fome insaciável.

Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.

Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.

Pois esta criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as forças dobra.

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.


                                                                           [Machado de Assis, 1880]


Seguem trechos de comentários sobre o poema acima:


"As Ocidentais [livro em que apareceram impressos os versos acima] não tem mais nada de americano, de particular ou local. Inpira-as e domina-as o pensamento geral comum das gentes do Ocidente. E eu diria com pesar que há nelas ainda menos emoção que nas suas irmãs primeiras [Crisálidas, de 1864; Falenas, de 1870; e Americanas, de 1875]. O que nelas há de mais novo, e para dizer à moda, mais forte, são as poesias de pensamento, ou filosóficas, segundo a cômoda classificação. 'O desfecho', 'Círculo vicioso', 'Uma criatura', 'Mundo interior', 'A mosca azul', 'No alto', todas elas de grande beleza – a beleza especial de tais composições – e sem par na nossa poesia."

[Veríssimo, José. "O Sr. Machado de Assis, poeta". In: _____. Estudos de literatura brasileira, 4a. série, p. 57]



"O que se deu é que por volta dos quarenta anos, aquele mundo interior de que ele fala num poema da Ocidentais absorveu por completo os seus dons de artista: 'mundo mais vasto, armado de outro orgulho'. E foi o mistério desse mundo que cada um de nós traz dentro de si o que lhe forneceu a inspiração da sua obra em prosa e das melhores coisas das Ocidentais. A universal insatisfação dos seres eternamente presos à sua condição ('Círculo vicioso'), a paradoxal força de destruição da vida ('Uma criatura'), o riso do deus enfermo, aborrecido da divindade e da eternidade ('A Artur de Oliveira'), o gozo de ver o padecimento alheio ('Suave Mari Magno'), a ânsia de descobrir a verdade sob as aparências do mundo, de ver 'como em água que deixa o fundo descoberto' os segredos dos corações ('A mosca azul'), a melancolia de não encontrar mais numa noite de Natal as sensações da idade antiga ('Soneto de Natal'), a melancolia da velhice ('No alto'), eis os temas que cristalizam as melhores energias poéticas do Mestre. São os mesmos temas das suas obras-primas no romence e no conto. A vida dos seus semelhantes lhe fornecia maior variedade de gestos com que exprimir as dolorosas conclusões da sua análise implacável."

[Bandeira, Manuel. "O Poeta". In: Assis, Machado de. Obra completa, vol. III, p. 14]



"Todavia, nem tudo se realiza perfeitamente. Ora, deparamos uma inegável riqueza de pensamento, como em 'Uma criatura', 'Mundo interior', 'O desfecho', 'Suavi Mari Magno', onde, porém, o raciocínio pesa sobre a emoção, e a obscurece e a sufoca. Ora, reveste adequadamente de emoção a idéia, como em 'A mosca azul', 'Círculo vicioso', 'Soneto de Natal', 'No alto' e especialmente no admirável 'Perguntas sem resposta', em que o pensamento se transubstancia numa metáfora que o embebe todo e ao mesmo tempo o deixa todo transparecer."

[Pacheco, João. "Precursor e contemporâneo: Machado de Assis". In: _____. O Realismo, p. 57]