25.12.13

poesia da ocasião




Poema de natal


Para isso fomos feitos: 
Para lembrar e ser lembrados 
Para chorar e fazer chorar 
Para enterrar os nossos mortos
 
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado 
Dedos para cavar a terra. 

Assim será a nossa vida: 

Uma tarde sempre a esquecer 
Uma estrela a se apagar na treva 
Um caminho entre dois túmulos
 
Por isso precisamos velar 
Falar baixo, pisar leve, ver 
A noite dormir em silêncio. 

Não há muito que dizer: 

Uma canção sobre um berço 
Um verso, talvez, de amor 
Uma prece por quem se vai
 
Mas que essa hora não esqueça 
E por ela os nossos corações 
Se deixem, graves e simples. 

Pois para isso fomos feitos: 
Para a esperança no milagre 
Para a participação da poesia 
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos... 
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas 
Nascemos, imensamente.



(de Poemas, sonetos e baladas, 1946)


21.11.13

Murilo Mendes, franco-atirador: segundo Laís Corrêa de Araújo

Capa desenhada por Di Cavalcanti.
Laís Corrêa de Araújo é autora de um alentado estudo sobre Murilo Mendes, estudo que abre com palavras de uma carta do poeta mineiro à autora, com os seguintes termos: "Eu tenho sido a vida inteira um franco-atirador. Procuro obedecer a uma espécie de lógica interna, de unidade apesar dos contrastes, dilacerações e mudanças; e sempre evitei os programas e manifestos". Sobre a produção poética de Murilo Mendes, que é inaugurada com a publicação do livro Poemas (1930), são esclarecedoras as seguintes palavras.



[...] Embora [apresente] algumas concessões ao humor e à sátira, expedientes então recentemente deflagrados pelo modernismo, Poemas já abre na obra muriliana o jogo livre entre o abstrato e o concreto, na ambiguidade das relações do material poético, em que a preocupação com a essencialidade do homem busca resolver-se pelo defrontar a peito aberto, entre a lucidez e o delírio, a realidade e o mito, as proposições ético-ontológicas do desafio existencial:

“Sou a luta entre um homem acabado
e um outro homem que está andando no ar”
(A luta)

Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, trabalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem nem o mal.”
(Mapa)

O tributo de Murilo Mendes ao momento literário, à chamada fase histórica do modernismo, ocorrerá, com certa defasagem, no desvio que é o volume História do Brasil, de 1932. [...]

(Araújo, Laís Corrêa de. Murilo Mendes. Petrópolis: Vozes, 1972, p. 25-6)


15.11.13

Outro sertão


Belíssimo filme o de Adriana Jacobsen e Adriana Vilela. O documentário conta a temporada surpreendente de Guimarães Rosa na Alemanha, quando foi vice-cônsul em Hamburgo, entre 1939 e 1942. Encanta pela preciosidade dos documentos relacionados como pela poesia sutil que deles a montagem faz emanar. Enche olhos, ouvidos e coração muitas das imagens apresentadas sempre a propósito, mais que todas o registro da entrevista concedida por Rosa à televisão alemã. Exibido ontem no Festival Internacional de Biografias, no Estoril, Praia de Iracema. Belíssimo! Confiram o trailer no seguinte link  
https://vimeo.com/74856362

13.11.13

Considerações sobre o Simbolismo

Passeando pelo Porta de Academia, livro que reúne artigos, crônicas e perfis de Moreira Campos (Edições UFC, 2013), encontro a seguinte consideração sobre a estética simbolista:

          "Considero o Simbolismo a mais autêntica das estéticas, aquela que, por seus princípios e postulados, se confunde com a própria arte literária. Veja-se a definição de Jean Moréas, enquanto poesia: 'inimiga do ensinamento, da declamação, da falsa sensibilidade, da descrição objetiva, a poesia simbolista procura vestir a Ideia duma forma sensível.'
          [...]
        Estética a nutrir-se do mistério, da inspiração mística, da musicalidade, das ruínas ou decadência (donde o decadentismo ou decadismo), tem ainda o recurso dos neologismo, da aliteração, das maiúsculas para aqueles vocábulos de maior expressão. [...]"

(Moreira Campos, Porta de Academia, texto originalmente publicado no jornal O Povo, 18/06/1988]

O trecho é para dar uma noção da elevada consideração que o Simbolismo merece de escritores e professores, e também dar uma mostra do interesse do livro de Moreira Campos, recentemente publicado, que traz sua colaboração na imprensa fortalezense.

Para quem tiver interesse em saber mais sobre a estética simbolista nas letras cearenses, vale conferir o Blog do Lívio Barreto, que traz textos do professor Sânzio de Azevedo (http://deliviobarreto.blogspot.com.br/)

12.11.13

cosmética modernista





Inspiração
Onde até na força do verão havia
tempestades de ventos e frios de
crudelíssimo inverno.

Fr. Luís de Sousa

São Paulo! Comoção de minha vida...
Os meus amores são flores feitas de original...
Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro...
Luz e bruma... Forno e inverno morno...
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...
Perfumes de Paris... Arys!
Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!...

São Paulo! Comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América!

[Mário de Andrade, Pauliceia desvairada, 1922]


9.11.13

circo modernista


Pesquisando sobre o teatro no período modernista, deparei com duas referências ao circo, aliás vinculando literatura e linguagem circense.
Eis os trechos:

 


          "Oswald [de Andrade], não é preciso frisar, fora muito mais longe em seus antagonismos do que Antônio de Alcântara Machado [que considerara o circo expressão autenticamente nacional]. A crise de 1929, cristalizando antigas rebeliões, marca para ele o ponto de ruptura em vários níveis: ruptura econômica, com o capitalismo; política, com democracia liberal; ideológica, com o catolicismo; moral, com a família concebida em moldes tradicionais; estética, com o próprio Modernismo, através da concepção da arte engajada politicamente. Até então o seu papel tinha sido o de um enfant terrible da burguesia: irreverente, imprevisível, mas ainda preso aos pais. Após o duplo choque da perda da fortuna e da religião, ambos registrados no prefácio famoso de Serafim Ponte Grande, ele reivindicava um novo papel: o de 'casaca de ferro na Revolução Proletária', em substituição ao de 'palhaço' da aristocracia paulista (duas metáforas circenses, seja dito de passagem)." (Prado, 2013, p. 145)

 

          "Em várias passagens de As Amargas, Não... fica patente o entusiasmo de Alvaro Moreyra com o modernismo -- 'O chamado modernismo no Brasil foi o encontro com o Brasil. Éramos brasileiros por fora. Ficamos brasileiros também por dentro'. Esse encontro com o nacional marca profundamente os poemas modernistas reunidos em Circo, livro que apareceu em 1929. São evidentes as afinidades com Oswald de Andrade antropófago, sobretudo nos momentos que recupera poeticamente os nossos tempos primitivos ou passagens da nossa história. Bons exemplos da busca de brasilidade efetuada por Alvaro Moreyra são poemas como 'Visita de S. Tomé', 'Brasil Fidalgo', 'História' e 'Estilização'." (Faria, 1998, p. 108-9)

 

 
Referências bibliográficas:
Prado, Décio de Almeida. "O Teatro". In: Ávila, Affonso (Org.). O Modernismo. 3a. edição. São Paulo: Perspectiva, 2013.
Faria, João Roberto. O teatro na estante: estudos sobre dramaturgia brasileira e estrangeira. São Paulo: Ateliê, 1998.

5.11.13

do vocabulário modernista


"as meninas da gare" é poema da primeira parte de Pau-Brasil (1925), intitulada "História do Brasil", que por sua vez subdivide-se em seções, sendo a primeira delas batizada de "Pero Vaz Caminha", em que se encontra. O título empresta uma significação nova às palavras de Caminha, dispostas como se versos fossem, propondo uma leitura de nossa formação colonial, assim como projetando uma visão crítica, poderíamos dizer pós-colonial (nos termos dos estudos culturais contemporâneos), da paisagem urbana contemporânea à produção do livro, ou seja, a paisagem paulistana da década de 1920 (que aliás os modernistas de São Paulo pretendiam fosse a representação cabal do Brasil como um todo). Este poema representa bem as propostas artístico-culturais que o "Manifesto da Poesia Pau-Brasil" (1924) trazia: retrata o ponto de partida para nossa "formação étnica rica"; é produto da "inocência construtiva", que serviria de princípio para a poesia pau-brasil; é "pela invenção e pela surpresa", emprestando significados inusitados aos textos históricos de nossa formação; é o registro poético de nossa "hospitalidade um pouco sensual, amorosa"; Pau-Brasil.
E alguém pergunta sobre a presença desse vocábulo estranho, quiçá estrangeiro, que aparece no título: gare. É palavra de origem francesa, mas incorporada ao vocabulário vernáculo desde o século XIX (o dicionário Houaiss data seu registro primeiro de 1873). Numa cidade como São Paulo dos anos 1920, em que tanto a cultura era marcada por uma arraigado galicismo, nada mais natural que as estações ferroviárias serem assim chamadas.
Seria esclarecedor notar observações perspicazes de Haroldo de Campos, quando aponta para o fato de ser a poesia de Pau-Brasil "uma poesia ready made" (na expressão de Décio Pgnatari), assim como trazer ele "um novo conceito de livro": "Seus poemas dificilmente se prestam a uma seleção sob o critério de peça antológica. Funcionam como poemas em série." (ver "Uma poética da radicalidade", de Haroldo de Campos).

31.10.13

dia do Saci e do Drummond

Hoje, dia 31 de outubro, dia D de Drummond, data de nascimento do poeta de Itabira e de tantos tempos presentes, e do Saci, personagem fundamental de nossa cultura. Para festejar lendo, vale conferir o texto a seguir, crônica escrita por Drummond em 1972, falando de Tom Jobim e matentapereira, e visagem,
e peitica, e muito mais. Evoé!




Tom e o pássaro


          Pássaro feliz é (devia ser) o matintapereira. Pois não ganhou canção de Valdemar Henrique, na voz de Mara? Mara, irmã do compositor, saudade no ouvido da gente, mas podia também ser Nara Leão. Como se não bastasse, é gratificado agora com outra canção, e de quem? Do muito ilustre e raro maestro Antônio Carlos Jobim, letra e música, esta em parceria com Paulinho Pinheiro, já divulgada pelo José Carlos Oliveira. É a glória.
         O mal-agradecido nem se dá conta disto, sempre naquele assobio estridente, monótono, embruxado, no meio da noite brasileira. E se a gente vai ver, seguindo o rastro sonoro, cadê passarinho? O diabo sumiu. Diabo? Não é à-toa que lhe chamam também saci. Tom pegou-lhe bem o jeito:
Quero ver, olerê olará,
você me pegar.
          Com a diferença de que saci é alegre, suas peraltices revelam o fundo lúdico do negrinho, que nunca chegam às tenebrosas maquinações: ele apaga fogo na cozinha, espalha boiada, assusta gente nos caminhos. E ri. Até a perna-só, de que se serve, é gozada; o cachimbo, idem. Já o saci-voador é triste, agourento, não se permite o bom humor negro. Pia soturno e some. A sabedoria do povo aconselha que se diga assim para ele, no entrevoo do sumiço:
          - Escuta aqui, amizade, passa lá em casa amanhã para apanhar tabaco, tá?
          Dia seguinte, já sabe: quem bater primeiro à porta da casa é o pobre homem ou mulher que à noite se converte em passarinho, e de manhã volta à condição humana, em busca de fumo para a cachimbada. Nunca mais ninguém quer saber dele ou dela. Pudera: virou matintapereira.
          Dizem, não sei se é mentira, mas na Amazônia, matinta quando pia, você deve cobrir as mãos com pano preto, de outra cor não seve; do contrário, as unhas emitem uma espécie de foguinho que espanta a visagem anunciada pelo pio. Cobrindo-as, você vê a coisa estranha, que no Maranhão é a velha Caapora, mas isso depende de ter coragem para ver coisas estranhas. O melhor é não ver nada, não ir atrás do matinta. Agora então, com a abertura da Transamazônica, sabe-se lá em que toco de pau ele se meteu?
           É tão safado que se disfarça sob os codinomes mais diversos e para cada ouvido oferece uma onomatopeia, em cada mato do Brasil. Carlinhos Oliveira dá-lhe sete nomes: além de matintapereira e da variante matita, informa que ele responde (ou antes, não responde) por fem-fem, sem-fim, peixe-frito, tempo-quente, saci. Valendo-me de Flávia da Silveira Lobo, doutora em bichos nacionais, posso acrescentar os seguintes: crispim, secofico, peito-ferido, peitica, piririguá, sede-sede, roceiro-planta. Antenor Nascentes grafa matim-taperê, segundo a lição de Basílio de Magalhães: elo na corrente de transformações populares, que vai de saci-pererê a matinta-pereira, nome quase de gente, e gente que se saúda na rua: Oi, Matinta. Falta só chamá-lo de Matinta Pereira da Silva, como lembrou Barbosa Rodrigues na Poranduba. De qualquer maneira, dispõe de tantas identidades que, no dia em que os bichos pagarem Imposto de Renda, é bem capaz de escapar do CPF - a menos que lhe preguem não uma, porém, 40 etiquetas.
          A canção de Tom devia enfunar de orgulho o papo de matinta. Não ouvi a música, mas se é de Tom é bom, garante Drummond. A letra, um esvoaçar de nomes e formas em torno de João (Guimarães Rosa), que se não era bruxo não sei o que fosse, talvez a própria bruxaria em túnica de linguagem. Há no poema um jogo de esconde-esconde que vai mostrando o sem-fim e o sem-para das coisas, das pessoas, dos pássaros. Tudo voa nas asa de matinta, que não é mais ave sinistra, é o gira-gira do mundo, a ave que ninguém pega, o sonho que ninguém acaba de sonhar. Puxa, matinta, mas você, hem? Nem reparou que o nosso Tom, olerê olará, voa mais alto e mais longe, e ninguém o segura mesmo.



Texto de Carlos Drummond de Andrade
Jornal do Brasil 
22 de abril de 1972

28.10.13

dia do servidor público





Difícil ser funcionário
Nesta segunda-feira.
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.

Não é lá fora o dia
Que me deixa assim,
Cinemas, avenidas
E outros não-fazeres.

É a dor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.

Eu nunca suspeitara
Tanta roupa preta;
Tão pouco essas palavras –
Funcionárias, sem amor.

Carlos, há uma máquina
Que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.

E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulos para todos
Os tamanhos de meu corpo.

Não me sinto correto
De gravata de cor,
E na cabeça uma moça
Em forma de lembrança.

[...]

Carlos, dessa náusea
Como colher a flor?
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.



[transcrição de manuscrito de João Cabral de Melo Neto, 29 de setembro de 1943
In Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles]