20.10.12

Literatura Brasileira II: pra começo de conversa...

Pra começarmos o semestre, trouxe para as turmas de Literatura Brasileira II um poema de Machado de Assis, que suscita a reflexão sobre aspectos importantes da cultura científica e literária do final do século XIX, assim como acusa algumas dos desenvolvimentos temáticos que o "Bruxo do Cosme Velho" (epíteto de Machado). Abaixo transcrevo os versos referidos, e em seguida trechos de comentários sobre os mesmos.



Uma Criatura

Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas
Com a sofreguidão da fome insaciável.

Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.

Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.

Pois esta criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as forças dobra.

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.


                                                                           [Machado de Assis, 1880]


Seguem trechos de comentários sobre o poema acima:


"As Ocidentais [livro em que apareceram impressos os versos acima] não tem mais nada de americano, de particular ou local. Inpira-as e domina-as o pensamento geral comum das gentes do Ocidente. E eu diria com pesar que há nelas ainda menos emoção que nas suas irmãs primeiras [Crisálidas, de 1864; Falenas, de 1870; e Americanas, de 1875]. O que nelas há de mais novo, e para dizer à moda, mais forte, são as poesias de pensamento, ou filosóficas, segundo a cômoda classificação. 'O desfecho', 'Círculo vicioso', 'Uma criatura', 'Mundo interior', 'A mosca azul', 'No alto', todas elas de grande beleza – a beleza especial de tais composições – e sem par na nossa poesia."

[Veríssimo, José. "O Sr. Machado de Assis, poeta". In: _____. Estudos de literatura brasileira, 4a. série, p. 57]



"O que se deu é que por volta dos quarenta anos, aquele mundo interior de que ele fala num poema da Ocidentais absorveu por completo os seus dons de artista: 'mundo mais vasto, armado de outro orgulho'. E foi o mistério desse mundo que cada um de nós traz dentro de si o que lhe forneceu a inspiração da sua obra em prosa e das melhores coisas das Ocidentais. A universal insatisfação dos seres eternamente presos à sua condição ('Círculo vicioso'), a paradoxal força de destruição da vida ('Uma criatura'), o riso do deus enfermo, aborrecido da divindade e da eternidade ('A Artur de Oliveira'), o gozo de ver o padecimento alheio ('Suave Mari Magno'), a ânsia de descobrir a verdade sob as aparências do mundo, de ver 'como em água que deixa o fundo descoberto' os segredos dos corações ('A mosca azul'), a melancolia de não encontrar mais numa noite de Natal as sensações da idade antiga ('Soneto de Natal'), a melancolia da velhice ('No alto'), eis os temas que cristalizam as melhores energias poéticas do Mestre. São os mesmos temas das suas obras-primas no romence e no conto. A vida dos seus semelhantes lhe fornecia maior variedade de gestos com que exprimir as dolorosas conclusões da sua análise implacável."

[Bandeira, Manuel. "O Poeta". In: Assis, Machado de. Obra completa, vol. III, p. 14]



"Todavia, nem tudo se realiza perfeitamente. Ora, deparamos uma inegável riqueza de pensamento, como em 'Uma criatura', 'Mundo interior', 'O desfecho', 'Suavi Mari Magno', onde, porém, o raciocínio pesa sobre a emoção, e a obscurece e a sufoca. Ora, reveste adequadamente de emoção a idéia, como em 'A mosca azul', 'Círculo vicioso', 'Soneto de Natal', 'No alto' e especialmente no admirável 'Perguntas sem resposta', em que o pensamento se transubstancia numa metáfora que o embebe todo e ao mesmo tempo o deixa todo transparecer."

[Pacheco, João. "Precursor e contemporâneo: Machado de Assis". In: _____. O Realismo, p. 57]


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