20.11.12

A ironia machadiana em busca da consciência negra

Machado de Assis foi um observador atento da sociedade carioca do século XIX. Não podia deixar de atentar, por mais que sua percepção estivesse envolvida por uma elite proprietária e geralmente escravista, para os males de uma sociedade fundada sobre o estigma do trabalho escravo. Aliás, é no seio desta classe proprietária do Segundo Reinado que Machado percebe as perversões sociais mais crueis, as taras adquiridas ao longo de décadas de práticas senhoriais legitimadas pela violência. "A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucediso a outras instituições sociais", diz-nos o começo da narrativa de "Pai contra Mãe", conto publicado em Relíquias da Casa Velha (1906). É certo, porém, que o longo período de vigência desta maldita "instituição social" incrustou fundo em nossa mentalidade alguns "ofícios e aparelhos", que restam como vestígios obscuros a serem sistematicamente criticados.
Para uma reflexão em torno da consciência negra no Brasil, à qual se dedica o dia de hoje (20 de novembro), segue uma crônica de Machado de Assis publicada no dia 19 de maio de 1888, alguns dias depois da assinatura da Lei Áurea. Reparem que não se trata propriamente do testemunho de Machado de Assis enquanto cidadão, mas um recorte irônico de parte relevante da realidade social daquele final de século, recorte ficcional elaborado pela pena do escritor. Eis o texto, publicado originalmente nos Bons Dias!, seção que Machado manteve na Gazeta de Notícias nos anos de 1888 e 1889.


[19 de maio]


Bons dias!

Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário for, que toda a história desta Lei de 13 de Maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.
Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.
No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as idéias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia a que a nação inteira devia acompanhar as mesmas idéias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.
Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio
abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembléia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.
No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
— Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que...
— Oh! meu senhô! fico.
— ... Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos...
— Artura não qué dizê nada, não, senhô...
— Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a
galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
— Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não
chamo filho do Diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre. O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes de abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposição) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do Céu.

Boas noites.

Um comentário:

Camila disse...

Mudando de período... você poderia postar umas sugestões de críticas sobre o texto "O Rei da Vela"?