23.11.12

Literatura Brasileira II: exercício de revisão comentado



Universidade Federal do Ceará
Centro de HumanidadesCurso de LetrasDepartamento de Literatura
Literatura Brasileira IIProfessor: Marcelo MagalhãesExercícios de Revisão


1. Leia o comentário crítico abaixo e responda aos itens que seguem:
[...]
Nos seus livros vive a sociedade brasileira do século passado [XIX]: se não o preocuparam os problemas metafísicos, é que pintou uma época nesse ponto sem inquietações; se a sua obra não impõe uma conclusão moral, há nela esparsa, muita reflexão finíssima, de rara profundidade, onde o pensador se revela, e também o moralista.
E quanta humanidade nos seus tipos! As suas figuras femininas, admiráveis, porejantes de um sensualismo contido, bem tropicais, formam uma vivíssima galeria. As mulheres de Machado de Assis mereceriam um estudo à parte. No romance brasileiro, mesmo no romance moderno, a mulher é quase sempre o ponto fraco. Em Machado, ao contrário, a sensibilidade penetra no recesso dos meandros femininos.
É que ele foi, realmente, inteiramente, um romancista, um criador de tipos que deveriam existir. Soube realizar essa transposição tão difícil da vida para a arte, não amesquinhando a primeira, não desvirtuando a segunda. E soube se engrandecer diminuindo-se, vivendo para a sua obra, vivendo dentro dela.
[...]
A glória de ter quase criado uma língua, de ter escrito em brasileiro antes de ninguém, cabe-lhe sem contestação. O assunto brasileiro já fora explorado, e até exagerado. José de Alencar já pusera em moda o nativismo e o indianismo literário. Mas quem ousou primeiro escrever esse português brando e claro que é o brasileiro, foi o cronista da Semana.

(Pereira, Lúcia M. “Machado em síntese”. Em: _____. A leitora e seus personagens.
Rio de Janeiro: Graphia, 1992, p. 196)

a) Lúcia Miguel Pereira, avaliando a obra do criador de Dom Casmurro, indica algumas características comuns à literatura de feição realista. Aponte ao menos duas delas, relacionando-as com o conto “O Alienista” e retirando dele os exemplos respectivos.

b) Um dos traços característicos de Machado de Assis, indicados por Lúcia Miguel Pereira, sugere certa distância que há entre sua obra e o caráter naturalista. Indique e descreva essa distância, recorrendo a um dos textos críticos do próprio Machado de Assis para fundamentar sua resposta.

2.  Analise o texto que segue, de Aluísio Azevedo, e responda as questões respectivas:

[...]
Por esse tempo Magdá era acometida por uma explosão de soluços, e chorava copiosamente, o peito muito oprimido.
— Ora até que enfim! rosnou o doutor. E, erguendo-se, soprou para o Conselheiro, a descer as mangas da camisa e da sobrecasaca, que havia arregaçado: — Pronto! Estes soluços continuarão ainda por algum tempo, e depois ela sossegará. Naturalmente há de dormir. O que lhe pode aparecer é a cefalalgia...
— Como?
— Dores de cabeça. Mas para isso você lhe dará o remédio que vou receitar.
E saíram juntos para ir ao escritório.
— É o diabo!... praguejava entre dentes o brutalhão, enquanto atravessava o corredor ao lado do Conselheiro, enfiando às pressas o seu inseparável sobretudo de casimira alvadia. — É o diabo! Esta menina já devia ter casado!
— Disso sei eu... balbuciou o outro. — E não é por falta de esforços de minha parte, creia!
— Diabo! Faz lástima que um organismo tão rico e tão bom para procriar, se sacrifique deste modo! Enfim — ainda não é tarde; mas se ela não casar quanto antes — hum... hum!... Não respondo pelo resto!
— Então o doutor acha que... ?
Lobão inflamou-se: — Oh! o Conselheiro não podia imaginar o que eram aqueles temperamentozinhos impressionáveis!... eram terríveis, eram violentos, quando alguém tentava contrariá-los! Não pediam — exigiam! — reclamavam!
— E se não lhes dá o que reclamam, prosseguiu, — aniquilam-se, estrangulam-se, como leões atacados de cólera! É perigoso brincar com a fera que principia a despertar... O monstro deu já sinal de si; e, pelo primeiro berro, você bem pode calcular o que não será quando estiver deveras assanhado!
— Valha-me Deus! suspirou o pobre Conselheiro, que eu hei de fazer, não dirão?
— Ora essa! Pois já não lhe disse! É casar a rapariga quanto antes!
— Mas com quem?
— Seja lá com quem for! O útero, conforme Platão, é uma besta que quer a todo custo conceber no momento oportuno; se lho não permitem — dana! Ora aí tem!
— Visto isso, o histerismo não é mais do que a hidrofobia do útero?...
— Não! Alto lá! Isso não! A histeria pode ter várias causas, nem sempre é produzida pela abstinência; seria asneira sustentar o contrário. Convenho mesmo com alguns médicos modernos em que ela nada mais seja do que uma nevrose do encéfalo e não estabeleça a sua sede nos órgãos genitais, como queriam os antigos; mas isso que tem que ver com o nosso caso? Aqui não se trata de curar uma histérica, trata-se de evitar a histeria. Ora, sua filha é de uma delicadíssima sensibilidade nervosa; acaba de sofrer um formidável abalo com a morte de uma pessoa que ela estremecia muito; está, por conseguinte, sob o domínio de uma impressão violenta; pois o que convém agora é evitar que esta impressão permaneça, que avulte e degenere em histeria; compreende você? Para isso é preciso, antes de mais nada, que ela contente e traga em perfeito equilíbrio certos órgãos, cuja exacerbação iria alterar fatalmente o seu sistema psíquico; e, como o casamento é indispensável àquele equilíbrio, eu faço grande questão do casamento.
— De acordo, mas...
— Casamento é um modo de dizer, eu faço questão é do coito! — Ela precisa de homem! — Ora aí tem você!
O Conselheiro suspirou com força, coçou a cabeça. Os dois penetraram no gabinete, e o doutor, depois de escrever a sua receita, acrescentou, como se não tivesse interrompido a conversa: — Noutras circunstâncias, sua filha não sofreria tanto... nada disso teria até consequências perigosas; mas, impressionável como é, com a educação religiosa que teve. E com aquele caraterzinho orgulhoso e cheio de intransigências, se não casar quanto antes, irá padecer muito; irá vive em luta aberta consigo mesma!
— Em luta? Como assim, doutor?
— Ora! A luta da matéria que impõe e da vontade que resiste; a luta que se trava sempre que o corpo reclama com direito a satisfação de qualquer necessidade, e a razão opõe-se a isso, porque não quer ir de encontro a certos preceitos sociais. Estupidez humana! Imagine que você tem uma fome de três dias e que, para comer, só dispões de um meio — roubar! Que faria neste caso?
— Não sei, mas com certeza não roubava...
— Então — morria de fome... Todavia um homem, de moral mais fácil que a sua não morreria, porque roubava... Compreende? — Pois aí tem!

(Azevedo, Aluísio. O Homem.
Em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bi000022.pdf)


a) Aponte as características da estética naturalista encontradas no texto acima, indicando trechos que possam servir-lhes de exemplo.

b) Lúcia Miguel Pereira afirma que na obra de Machado de Assis “vive a sociedade brasileira do século passado [XIX]”. Pode-se dizer que a mesma sociedade brasileira vive na obra de Aluísio de Azevedo? Quais as diferenças? Como relacionar essas diferenças às peculiaridades estéticas do realismo e do naturalismo?


   3. Relacione a frase abaixo com a crítica de Machado de Assis ao naturalismo, argumentando e exemplificando com aspectos evidentes nos contos e nas crônicas do autor carioca:

“Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto. [...] A vantagem dos míopes é enxergar onde as grandes vistas não pegam.”
(“A Semana”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 11/11/1897)



Comentários:

1a)
Primeiramente seria interessante reparar nos traços característicos da escola realista referidos no trecho da crítica de Lúcia Miguel Pereira. Como discutimos em sala de aula, Machado de Assis muitas vezes transcende os limites do realismo, não se limitando aos dogmas da escola. O que não quer dizer que não encontremos feições realistas na obra machadiana. Assim, o primeiro dos traços característicos do realismo que encontramos no trecho acima está em sua primeira afirmação: "Nos seus livros vive a sociedade brasileira do século passado [XIX]". Esse é uma das mas importantes características do realismo: retratar criticamente a sociedade contemporânea, que para os escritores realistas era a do século XIX. Era a sociedade oitocentista brasileira, com as trasformações que os avanços técnicos e tecnológicos propiciavam, o alvo fundamental do olhar do escritor realista: o problema da escravidão, que começava a ser sistematicamente combatido; a questão religiosa, que passava a questionar duramente a influência da igreja católica na vida social e política brasileira; a campanha republicana, que refletia os desacertos de um reinado tropical problemático; e diversos outros aspectos, que faziam da organização social brasileira a matéria essencial da reflexão levantada pela literatura realista. Isso justifica o trecho que segue a afirmação citada, de Lúcia Miguel Pereira, que aponta a ausência de "problemas metafísicos" na obra machadiana; ora, a problemática mais candente do momento era, como afirmei anteriormente, social e mesmo sociológica; as inquietações metafísicas (deus, a alma, a morte) haviam se tornado então secundárias (e veremos que ela surgirá na poesia simbolista brasileira). Esse primeiro traço característico, portanto, que revela o olhar atento dos escritores realistas para a sociedade contemporânea, é próprio da escola realista e encontra-se também, obviamente, na produção ficcional (nos contos e romances) de Machado.
O segundo traço característico definidor diz respeito aos personagens, "tipos que deveriam existir", diz Lúcia Miguel. Sabemos que, contrapondo-se à idealização romântica que criou personagens praticamente míticos (como Iracema ou Peri), o realismo manteve os pés no chão no desenho de seus personagens, revelando personalidades que podiam ser observados no cenário da sociedade brasileira. Essa característica, consequência da primeira (analisar a sociedade brasileira contemporânea aos escritores de então), é fundamental para a definição da literatura realista, e foi também, como aliás está afirmado no trecho crítico da questão 1, uma característica da ficção machadiana.
Relacionemos agora esses traços com "O Alienista". A narrativa que conta a trajetória de Simão Bacamarte não é propriamente contemporânea ao momento em que Machado a escreve, ou seja, a narrativa se passa em tempo anterior, tempo que podemos localizar aproximadamente no início do século XIX; mas os aspectos que são alvo da irônica crítica de Machado são evidentemente próprios do momento em que o autor de Dom Casmurro viveu e escreveu sua obra madura: a crítica ao cientificismo, a reflexão sobre o papel da mulher na sociedade brasileira e a sátira acerca dos vícios retóricos e ornamentais no discurso de alguns personagens, como o mesmo Simão Bacamarte, são contundentes no ataque a aspectos da vida sociocultural daquele final de século XIX. Para relacionarmos "O Alienista" ao segundo segundo traço caracterizador antes referido, a presença de "tipos que deveriam existir", não será necessário grande esforço reflexivo; Simão Bacamarte, dona Evarista, o boticário Crispim Soares e o Padre Lopes, entre outros menos proeminentes, são tipos construídos a partir da observação minuciosa de indivíduos existentes no tempo de Machado, tipos que definem modos de convivência e conveniência social própios daquele final de século.
O que podemos apontar como peculiaridade da narrativa machadiana em "O Alienista", e que entra em divergência com os princípios da literatura realista, é a presença de um narrador que se mostra ao leitor em gestos irônicos e humorísticos. Antonio Candido chamou certa vez essa maneira do narrador machadiano de "bisbilhotice saborosa", o que contradiz a objetividade e a impassibilidade que caracterizaram o narrador padrão do realismo. O seguinte trecho vale uma pequena reflexão: "D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro, que posto não fosse sequer uma pálida sombra do que hoje é, todavia era alguma cousa mais do que Itaguaí". Neste pequeno trecho, o narrador demarca sua distância diante do tempo em que a história de Simão Bacamarte transcorre, além de aludir sutilmente às transformações pelas quais passou a cidade do Rio de Janeiro ("pálida sombra do que hoje é"). Outro trecho significativo encontramos no início do capítulo XI, "O assombro de Itaguaí": "E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila...". O narrador machadiano é portanto uma espécie de mestre de cerimônias que apresenta seus convidados (os personagens) ao leitor, deixando sempre transparecer um discreto sorriso sarcástico, marca do olhar crítico de Machado de Assis.

1b)

Este segundo item é mais simples que o primeiro, e espero não estender-me tanto. Dois aspectos apontados por Lúcia Miguel nos fazem relembrar o estratégico distanciamento que Machado de Assis manteve diante dos preceitos da literatura naturalista. O primeiro deles diz respeito às "figuras femininas [...], porejantes de um sensualismo contido"; ora, sabemos que as figuras femininas que o naturalismo criou eram espécies escravizadas por sua própria sexualidade, organismos previsíveis, pois estavam geralmente submetidos ao pretenso determinismo biológico, fatalidade inescapável (ver o texto da questão 2, de Aluísio Azevedo). O segundo aspecto relaciona-se com o primeiro e diz respeito aos personagens machadianos, "tipos que deveriam existir", e não figuras mecânicas que agem de acordo com determinismos fatalistas. A crítica de Machado de Assis a O Primo Basílio traz pontos que se relacionam com os aspectos acima apontados; para o escritor-crítico, a narrativa de Eça trazia "aquela reprodução fotográfica e servil das coisas mínimas e ignóbeis"; o narrador do romance criticado "não esquece nada, e não oculta nada"; e além disso, os episódios do romance queiroziano "tinham o mérito do pomo defeso", ou seja, o mérito do escândalo, do pecado escancarado (o "pomo defeso" como metáfora do pecado original). E creio que basta por ora.

3 comentários:

Anônimo disse...

"figuras femininas [...], porejantes de um sensualismo contido"

o que é porejantes????

Iolaudo

Marcelo Magalhães disse...

de porejar, sair pelos poros, transpirar: transpirar, como tipo que deveria existir, um tal sensualismo contido.
Marcelo

Unknown disse...
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