25.5.14

Retratos do século XIX: Ce pays féerique

Selva brasileira, de Manuel de Araújo Porto Alegre (1806-1879)


Ce pays féerique... Assim se exprime Sarah Bernhardt, em relação ao Brasil, no telegrama com que desmente os conceitos que uma folha argentina lhe atribuiu. Cara Melpônome,
Sarah Bernard (fotografia de 1860)
quem te levou a escrever essas palavras que me matam? Tu sabes ou fica sabendo, que te admiro, não só pelo gênio, mas ainda pela originalidade. O banal afoga-me. [...] Uma das minhas convicções (e tenho poucas) era esta: se algum dia Sarah escrever a nosso respeito, não empregará a velha chapa de todos o viajantes que por aqui passam ce pays féerique. E tu, amiga minha, tu arrancas-me sem piedade dessa ilusão de meu outono.

[Machado de Assis, A Semana, 20 de gosto de 1893]

23.5.14

ROTEIRO DE ESTUDO DOS LIVROS INDICADOS PARA SEMINÁRIOS





1.       A obra, o autor, o momento:
A obra estudada desenvolve que gênero literário? Qual a significação da obra estudada diante da produção literária de seu autor? Qual a significação da obra estudada para a literatura brasileira? Qual a relação entre a obra, o momento literário em que surgiu e a tradição literária? Existem referências explícitas a antecessores literários ou influências culturais na obra estudada?

2.       Enredo, episódios, personagens:
Relate em síntese o enredo da obra estudada. Aponte dois episódios que você tenha considerado centrais na obra (não deixe de justificar sua escolha). Relacione os principais personagens, indique os sentidos de sua atuação e seus fins. Se possível, aproxime os personagens relacionados a outras figuras da tradição literária.

3.       A linguagem, os recursos narrativos, as opções estilísticas:
Como você caracterizaria a linguagem da obra estudada? Ela é característica do momento literário de que participa – ou se distancia do padrão literário de sua época? Quais os recursos narrativos mais recorrentes? A obra estudada opta por um estilo de época – ou se impõe como única e inovadora?

4.       Expressão literária, espaço social e representações históricas:
Aponte as relações entre a expressão literária da obra estudada e espaços sociais históricos. Indique as expressões de uma consciência crítica diante do espaço social representado. Reflita, a partir da obra estudada, acerca das relações entre literatura e sociedade. Se possível, faça um levantamento dos episódios históricos representados na obra estudada.




20.5.14

Uma leitura analítica de "Náufrago", poema de Alphonsus de Guimaraens




Sobre o soneto "Náufrago", importa inicialmente localizá-lo na obra de Alphonsus de Guimaraens. Integra o livro Kiriale, primeiro livro a ser escrito pelo poeta mineiro, entretanto publicado somente em 1902, após o aparecimento de Setenário das Dores de Nossa Senhora, Câmara Ardente e Dona Mística (todos publicados em 1899). A lista dos títulos é significativa, pois evoca o universo do misticismo católico que a poesia de Alphonsus tão ternamente canta. Como sugeriu Alfredo Bosi, podemos dizer que o Solitário de Mariana tratou de um só tema em sua poesia de tonalidade elegíaca. "Náufrago" no entanto é uma curiosíssima variação do tema (da morte da amada), focalizando com mais vagar a figura amedrontada do próprio eu lírico. O poema abre o Caput II, intitulado "Os sonetos", que traz uma sugestiva epígrafe, recorte de um soneto de Charles Baudelaire: "J'étais mort sans surprise, et la terrible aurore/ M'enveloppait — Eh quoi! n'est-ce donc que cela!". O tema da morte está posto desde o princípio, e o poema em questão não fugirá dele. O título "Náufrago" já sugere a apresentação do eu lírico, que irá encarnar completamente a metáfora no terceto final ("Sou um navio sem mastros."). O soneto trata portanto desse indivíduo que "teme tudo", vindo de alguma "noite sem luar" e perdido nas "trevas sem fim"; algum "mistério fatal" o amedronta, além da própria "terra", o que o faz padecer, chorar, ansiar; a seus pés "a saudade tirita", enquanto o eu lírico caminha "para a morte alucinado e só"; por fim, a constatação, a fatalidade tremenda: ser "um navio sem mastros", à deriva retardando sua caminhada em direção à morte. Os recursos poéticos utilizados por Alphonsus para sugerir o ambiente que ficou esboçado nas linhas acima são característicos de sua poesia. O primeiro verso, que como os demais se estrutura na forma tradicional do alexandrino (doze sílabas), é bastante sugestivo em sua sonoridade marcada pela recorrência das dentais ("E temo, e temo tudo, e nem sei o que temo"); a sugestão sonora nos evoca o eu lírico trêmulo e tateante nas trevas em que se encontra; o segundo verso, ao contrário do primeiro (de cadência cheia de pausas), tem uma sintaxe continuada e corredia, o que equivaleria à própria errância do olhar do eu lírico na escuridão, olhar perdido na vastidão das trevas; assim como o terceiro verso, em que figura a expressão "de extremo a extremo", reforçando esta medonha vastidão, é encerrado por reticências que a realçam (pontuação típica da poesia simbolista). Voltando aos aspectos temáticos, seria interessante tomar a segunda estrofe como indicadora de certa feição decadentista do poeta: o eu lírico afirma que a própria terra o amedronta, como se fosse ele deslocado neste espaço tristemente pedestre, aguardando apenas o momento em que sua alma se transformará "em astros", seu corpo irá se desfazer "em pó" (o que recorda o destino do corpo e da alma de "Ismália", uma das canções do livro Pastoral dos crentes do amor e da morte, livro póstumo de 1923); o primeiro verso desta segunda estrofe utiliza novamente o recurso de uma sonoridade sugestiva, recorrendo mais uma vez às labiais ("Amedronta-me a terra, e se a contemplo, tremo"); o segundo verso traz um vocábulo sintomático da formação de Alphonsus como poeta simbolista, leitor de poetas e escritores caros ao espírito da estética simbolista, como é o caso de Edgar Allan Poe, que pode ser evocado pelo uso da palavra "corvejar" (vale lembrar que o corvo de Poe já fora evocado em poema anterior do mesmo livro, "A cabeça de corvo", ). O primeiro terceto faz referência a uma "saudade", que aparece personificada pela disposição espacial em que é colocada ("aos meus pés") e pelo verbo a ela relacionada ("A saudade tirita"); esta saudade, personificada, "vai deixando/ Atrás de si a mágoa e o sonho..."; esta saudade poderia evocar o tema da morte da amada, ou da amada morta, que aqui é muito rapidamente referida; pois logo em seguida, subitamente, o eu lírico volta-se para si: "E eu, miserando"; a certeza terrífica e confortante da morte faz o eu lírico seguir "alucinado e só". Por fim o terceto derradeiro, em que um grito parece ser lançado na solitária alucinação do eu lírico (vale lembrar o quadro "O grito", do pintor expressionista Edvard Munch): "O naufrágio, meu Deus!"; antes de perceber-se como "um navio sem mastros", o eu lírico percebe a imagem do
O grito (1893), de Edvard Munch.
naufrágio, fora de si, símbolo de si, de sua condição de "blasfemo" e "miserando"; e os dois versos finais apontam para a cisão entre corpo e alma, que aparece em outras composições de Alphonsus, e que mais uma vez insiste na temática macabra e no tom elegíaco que marcam a particular poesia do "Pobre Alphonsus" (chamado alhures de "poeta lunar", aqui privado desse seu elemento característico); etc. etc.


Sobre o verso de Alphonsus de Guimaraens

Alphonsus de Guimaraens.



"O próprio exame do verso alphonsino nos conduzirá a conclusão inteiramente oposta. A influência verlainiana seria apenas quanto ao tonus, quanto à atmosfera de sua poesia. Quanto ao verso, não. O verso ímpar de Verlaine  era de nove sílabas. Alphonsus nunca utilizava esse metro. E mais: no caso específico da redondilha vamos observar exatamente que a redondilha utilizada por Alphonsus era ibérica e não francesa. O verso popular ibérico, a redondilha maior, se compõe de sete sílabas. Enquanto o francês é octossílabo, segundo a nossa contagem."

(Eduardo Portella, "O universo poético de Alphonsus de Guimaraens", 1960)


Das agruras do Simbolismo no Brasil





"E essas incompreensões conseguiram abalar o prestígio inicial do Simbolismo entre nós. As razões eram perfeitamente explicáveis. Antes de tudo, o Parnasianismo era um poder devidamente constituído. Estávamos em pleno reinado do Positivismo. O fato de alguns simbolistas famosos serem egressos do Parnasianismo dava à nova estética uma feição de dissidência parnasiana e comprometia seu caráter renovador. Por outro lado, a ausência de ação pessoal, a incapacidade, para entenderem-se e coordenarem-se como movimento unificado, entregava o destino do Simbolismo à sorte particular de cada um dos seus representantes. Tudo isto se aliava a uma tendência que proliferou na crítica do fim do século XIX e início deste: a tendência às comparações desabonadoras. Segundo ela Cruz e Sousa seria um pastiche de Baudelaire e Alphonsus de Guimaraens um Verlaine tropical. E só muito recentemente, e contra algumas resistências, a crítica brasileira de um modo geral retificou a sua posição frente ao Simbolismo."

(Eduardo Portella, "O universo poético de Alphonsus de Guimaraens", 1960)


Na panelinha de Machado de Assis: nela cabem Arthur Azevedo, Olavo Bilac, José Veríssimo, entre outros; não há porém um só dos poetas simbolistas.

19.5.14

Mais um estudo sobre a poesia de Alphonsus de Guimaraens

Segue mais um artigo de Francini Ricieri sobre a poesia lírica de Alphonsus de Guimaraens. A pesquisadora se dedica ao estudo da obra poética do "Solitário de Mariana", tendo organizado a Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira (editada em parceria pela Lazuli e pela Companhia Editora Nacional em 2007). Eis o endereço para acessar o artigo:
revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/download/.../6580


18.5.14

Sobre dois poemas: "Explicação" e "Mapa"

"Explicação", de Carlos Drummond de Andrade, e "Mapa", de Murilo Mendes, são poemas em que se encena a apresentação de um eu lírico. Digo encenação porque logicamente não se trata de um fiel retrato autobiográfico de seus respectivos autores, mas de certo fingimento poético que figura uma individualidade, de modo irônico ou caricato. Os dois poemas foram estampados nos livros inaugurais de Drummond e de Murilo, publicados ambos em 1930, Alguma poesia e Poemas.
"Explicação" começa com certa consideração que o eu lírico faz sobre sua própria poesia: "Meu verso é minha consolação./ Meu verso é minha cachaça.". Segundo Alcides Vilaça, com estes versos já se anuncia o "método geral" do poema: "o de definir tudo por meio de um insistente movimento de contradições"; "consolação" e "cachaça" representariam este movimento: "arte consoladora, em regime de contrição e lirismo, e obsessão viciosa como a da pinga, na verificação mais prosaica".
Há em "Explicação" considerações metalinguísticas, nas quais o poeta aponta a variedade temática de seu verso (versos 5, 6 e 7). Na sequência dessas considerações, o eu lírico aponta para a "culpa" de sua tristeza: "A culpa é da sombra das bananeiras de meu país; esta sombra mole, preguiçosa"; essa "culpa" deve ser lida como sátira ao suposto caráter indolente, melancólico e sentimental do brasileiro, que Bilac apontava como produto de "três raças tristes".
O cinema ("Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson") aparece como primeiro índice de progresso e modernidade, que se contrapõe ao som da viola, fazendo o eu lírico referir a sua origem de fazendeiro, o que explica certo sentimento telúrico, anunciado ironicamente: "é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de". O verso seguinte (verso 23), segundo Alcides Vilaça, "tem a notável ambiguidade de quem parece enaltecer o valor indiscutível do torrão natal, mas não o vê concretizado em lugar algum". Além dessa contraposição, o poeta refere a um par antitético fundamental: "No elevador penso na roça,/ na roça penso no elevador".
A estrofe seguinte (versos 29 a 38) traz mais considerações sobre a origem desse eu lírico que se explica, indicando o "suspirar pela Europa" como a maior de "todas as burrices"; segundo Alcides Vilaça, "desqualifica a Europa, fingindo confundi-la com uma vaga e distante cidade onde se falam outras línguas, velhas e exóticas; e volta a enaltecer o 'aqui' e 'a gente', na forma tão nossa de autodefinição: 'é tudo uma canalha só". Tudo leva ao direito de concluir pelo axioma nacional do 'no fim dá certo'".
E o poema termina evocando a possibilidade de seu poema não ter dado certo, mas creditando ao leitor a responsabilidade por isso ("foi seu ouvido que entortou"). É, segundo a leitura de Alcides Vilaça, a "complicação" do poema: "A 'complicação' da 'explicação' se dá sob a forma de um divórcio estético, que lança suspeitas sobre as cumplicidades, sobre a consensualidade que vinha servindo ao poeta e ao leitor. A possibilidade de o poema no fim 'não dar certo' já é tratada como um fato, cujo prejuízo se desloca e se debita do lado do leitor: um outro para esse eu que não é 'senão poeta'. Imputando a esse outro lado a tortuosidade que costumava ver em si mesmo, o sujeito poético mina as certezas conservadoras do 'verso certo' (sendo difícil esquecermos o que havia de canônico, de belles lettres e de oficialismo na poesia dominante da época), afirma uma espécie de nova afinação para a poesia e, dentro do restritivo -- 'não sou senão poeta' --, garante-se um espaço de liberdade imprevista."

O poema é longo e prosaico, o que torna visível a primeira vista a utilização do verso livre, atualizando o que Mário de Andrade chamou de "ritmo livre". Aliás, Mário de Andrade sugeriu inicialmente a Drummond que este poema fosse o primeiro na organização de Alguma poesia, sugestão que foi modificada quando Mário conheceu o "Poema de sete faces"."Explicação" não foi incluído na seleção feita por Drummond para sua Antologia poética (1962), mas podemos relacioná-la entre os poemas que refletem sobre a própria poesia e sobre o fazer poético, a seção intitulada "Poesia contemplada" (ainda que as figurações biográficas que o poema apresenta aproximá-lo da primeira das seções temáticas, "Um eu todo retorcido", em que se encontra o famoso "Poema de sete faces"). O princípio modernista da "atualização da inteligência artística brasileira", referido por Mário de Andrade, é evidente no entrelaçamento de aspectos da cultura moderna e cosmopolita e de elementos de nossa formação tradicional.
Sobre "Mapa", confira os comentários do vídeo abaixo: