20.5.14

Uma leitura analítica de "Náufrago", poema de Alphonsus de Guimaraens




Sobre o soneto "Náufrago", importa inicialmente localizá-lo na obra de Alphonsus de Guimaraens. Integra o livro Kiriale, primeiro livro a ser escrito pelo poeta mineiro, entretanto publicado somente em 1902, após o aparecimento de Setenário das Dores de Nossa Senhora, Câmara Ardente e Dona Mística (todos publicados em 1899). A lista dos títulos é significativa, pois evoca o universo do misticismo católico que a poesia de Alphonsus tão ternamente canta. Como sugeriu Alfredo Bosi, podemos dizer que o Solitário de Mariana tratou de um só tema em sua poesia de tonalidade elegíaca. "Náufrago" no entanto é uma curiosíssima variação do tema (da morte da amada), focalizando com mais vagar a figura amedrontada do próprio eu lírico. O poema abre o Caput II, intitulado "Os sonetos", que traz uma sugestiva epígrafe, recorte de um soneto de Charles Baudelaire: "J'étais mort sans surprise, et la terrible aurore/ M'enveloppait — Eh quoi! n'est-ce donc que cela!". O tema da morte está posto desde o princípio, e o poema em questão não fugirá dele. O título "Náufrago" já sugere a apresentação do eu lírico, que irá encarnar completamente a metáfora no terceto final ("Sou um navio sem mastros."). O soneto trata portanto desse indivíduo que "teme tudo", vindo de alguma "noite sem luar" e perdido nas "trevas sem fim"; algum "mistério fatal" o amedronta, além da própria "terra", o que o faz padecer, chorar, ansiar; a seus pés "a saudade tirita", enquanto o eu lírico caminha "para a morte alucinado e só"; por fim, a constatação, a fatalidade tremenda: ser "um navio sem mastros", à deriva retardando sua caminhada em direção à morte. Os recursos poéticos utilizados por Alphonsus para sugerir o ambiente que ficou esboçado nas linhas acima são característicos de sua poesia. O primeiro verso, que como os demais se estrutura na forma tradicional do alexandrino (doze sílabas), é bastante sugestivo em sua sonoridade marcada pela recorrência das dentais ("E temo, e temo tudo, e nem sei o que temo"); a sugestão sonora nos evoca o eu lírico trêmulo e tateante nas trevas em que se encontra; o segundo verso, ao contrário do primeiro (de cadência cheia de pausas), tem uma sintaxe continuada e corredia, o que equivaleria à própria errância do olhar do eu lírico na escuridão, olhar perdido na vastidão das trevas; assim como o terceiro verso, em que figura a expressão "de extremo a extremo", reforçando esta medonha vastidão, é encerrado por reticências que a realçam (pontuação típica da poesia simbolista). Voltando aos aspectos temáticos, seria interessante tomar a segunda estrofe como indicadora de certa feição decadentista do poeta: o eu lírico afirma que a própria terra o amedronta, como se fosse ele deslocado neste espaço tristemente pedestre, aguardando apenas o momento em que sua alma se transformará "em astros", seu corpo irá se desfazer "em pó" (o que recorda o destino do corpo e da alma de "Ismália", uma das canções do livro Pastoral dos crentes do amor e da morte, livro póstumo de 1923); o primeiro verso desta segunda estrofe utiliza novamente o recurso de uma sonoridade sugestiva, recorrendo mais uma vez às labiais ("Amedronta-me a terra, e se a contemplo, tremo"); o segundo verso traz um vocábulo sintomático da formação de Alphonsus como poeta simbolista, leitor de poetas e escritores caros ao espírito da estética simbolista, como é o caso de Edgar Allan Poe, que pode ser evocado pelo uso da palavra "corvejar" (vale lembrar que o corvo de Poe já fora evocado em poema anterior do mesmo livro, "A cabeça de corvo", ). O primeiro terceto faz referência a uma "saudade", que aparece personificada pela disposição espacial em que é colocada ("aos meus pés") e pelo verbo a ela relacionada ("A saudade tirita"); esta saudade, personificada, "vai deixando/ Atrás de si a mágoa e o sonho..."; esta saudade poderia evocar o tema da morte da amada, ou da amada morta, que aqui é muito rapidamente referida; pois logo em seguida, subitamente, o eu lírico volta-se para si: "E eu, miserando"; a certeza terrífica e confortante da morte faz o eu lírico seguir "alucinado e só". Por fim o terceto derradeiro, em que um grito parece ser lançado na solitária alucinação do eu lírico (vale lembrar o quadro "O grito", do pintor expressionista Edvard Munch): "O naufrágio, meu Deus!"; antes de perceber-se como "um navio sem mastros", o eu lírico percebe a imagem do
O grito (1893), de Edvard Munch.
naufrágio, fora de si, símbolo de si, de sua condição de "blasfemo" e "miserando"; e os dois versos finais apontam para a cisão entre corpo e alma, que aparece em outras composições de Alphonsus, e que mais uma vez insiste na temática macabra e no tom elegíaco que marcam a particular poesia do "Pobre Alphonsus" (chamado alhures de "poeta lunar", aqui privado desse seu elemento característico); etc. etc.


Um comentário:

Luciene Rroques disse...

Desejo-lhe uma excelente semana.
Um grande abraço!