18.5.14

Sobre dois poemas: "Explicação" e "Mapa"

"Explicação", de Carlos Drummond de Andrade, e "Mapa", de Murilo Mendes, são poemas em que se encena a apresentação de um eu lírico. Digo encenação porque logicamente não se trata de um fiel retrato autobiográfico de seus respectivos autores, mas de certo fingimento poético que figura uma individualidade, de modo irônico ou caricato. Os dois poemas foram estampados nos livros inaugurais de Drummond e de Murilo, publicados ambos em 1930, Alguma poesia e Poemas.
"Explicação" começa com certa consideração que o eu lírico faz sobre sua própria poesia: "Meu verso é minha consolação./ Meu verso é minha cachaça.". Segundo Alcides Vilaça, com estes versos já se anuncia o "método geral" do poema: "o de definir tudo por meio de um insistente movimento de contradições"; "consolação" e "cachaça" representariam este movimento: "arte consoladora, em regime de contrição e lirismo, e obsessão viciosa como a da pinga, na verificação mais prosaica".
Há em "Explicação" considerações metalinguísticas, nas quais o poeta aponta a variedade temática de seu verso (versos 5, 6 e 7). Na sequência dessas considerações, o eu lírico aponta para a "culpa" de sua tristeza: "A culpa é da sombra das bananeiras de meu país; esta sombra mole, preguiçosa"; essa "culpa" deve ser lida como sátira ao suposto caráter indolente, melancólico e sentimental do brasileiro, que Bilac apontava como produto de "três raças tristes".
O cinema ("Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson") aparece como primeiro índice de progresso e modernidade, que se contrapõe ao som da viola, fazendo o eu lírico referir a sua origem de fazendeiro, o que explica certo sentimento telúrico, anunciado ironicamente: "é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de". O verso seguinte (verso 23), segundo Alcides Vilaça, "tem a notável ambiguidade de quem parece enaltecer o valor indiscutível do torrão natal, mas não o vê concretizado em lugar algum". Além dessa contraposição, o poeta refere a um par antitético fundamental: "No elevador penso na roça,/ na roça penso no elevador".
A estrofe seguinte (versos 29 a 38) traz mais considerações sobre a origem desse eu lírico que se explica, indicando o "suspirar pela Europa" como a maior de "todas as burrices"; segundo Alcides Vilaça, "desqualifica a Europa, fingindo confundi-la com uma vaga e distante cidade onde se falam outras línguas, velhas e exóticas; e volta a enaltecer o 'aqui' e 'a gente', na forma tão nossa de autodefinição: 'é tudo uma canalha só". Tudo leva ao direito de concluir pelo axioma nacional do 'no fim dá certo'".
E o poema termina evocando a possibilidade de seu poema não ter dado certo, mas creditando ao leitor a responsabilidade por isso ("foi seu ouvido que entortou"). É, segundo a leitura de Alcides Vilaça, a "complicação" do poema: "A 'complicação' da 'explicação' se dá sob a forma de um divórcio estético, que lança suspeitas sobre as cumplicidades, sobre a consensualidade que vinha servindo ao poeta e ao leitor. A possibilidade de o poema no fim 'não dar certo' já é tratada como um fato, cujo prejuízo se desloca e se debita do lado do leitor: um outro para esse eu que não é 'senão poeta'. Imputando a esse outro lado a tortuosidade que costumava ver em si mesmo, o sujeito poético mina as certezas conservadoras do 'verso certo' (sendo difícil esquecermos o que havia de canônico, de belles lettres e de oficialismo na poesia dominante da época), afirma uma espécie de nova afinação para a poesia e, dentro do restritivo -- 'não sou senão poeta' --, garante-se um espaço de liberdade imprevista."

O poema é longo e prosaico, o que torna visível a primeira vista a utilização do verso livre, atualizando o que Mário de Andrade chamou de "ritmo livre". Aliás, Mário de Andrade sugeriu inicialmente a Drummond que este poema fosse o primeiro na organização de Alguma poesia, sugestão que foi modificada quando Mário conheceu o "Poema de sete faces"."Explicação" não foi incluído na seleção feita por Drummond para sua Antologia poética (1962), mas podemos relacioná-la entre os poemas que refletem sobre a própria poesia e sobre o fazer poético, a seção intitulada "Poesia contemplada" (ainda que as figurações biográficas que o poema apresenta aproximá-lo da primeira das seções temáticas, "Um eu todo retorcido", em que se encontra o famoso "Poema de sete faces"). O princípio modernista da "atualização da inteligência artística brasileira", referido por Mário de Andrade, é evidente no entrelaçamento de aspectos da cultura moderna e cosmopolita e de elementos de nossa formação tradicional.
Sobre "Mapa", confira os comentários do vídeo abaixo:

 

Um comentário:

Anônimo disse...

Ótima interpretação!! Parabéns!
Um pecado não existirem leitores nesse país para textos de qualidade