28.6.13

O caminho inicial de Vinícius

"Eu tinha 19 anos quando, pela mão de Otávio de Faria, fui pedir-lhe [a Augusto Frederico Schmidt] para distribuir meu primeiro livro de versos." É assim que Vinícius lembra de seu caminho inicial, trilhado ao lado do romancista Otávio de Faria, em texto escrito por ocasião da morte de Schmidt (em 1965). Vinícius foi em busca da edição de seu livro O caminho para a distância, o primeiro, que seria de fato publicado em 1933 pela Livraria Schmidt Editora. Otávio e Schmidt formavam então o primeiro escalão do pensamento católico de direita no Brasil, capitaneado por Tristão de Athayde desde 1928. Vinícius compartilhava então com o grupo católico o movimento de reação espiritualista na literatura, praticando uma poesia pessimista, mística e apegada a vagos princípios católicos. Um trecho do primeiro poema do livro, intitulado "Místico", dá uma ideia clara desses primeiros passos.

O ar está cheio de murmúrios misteriosos
E na névoa clara das coisas há um vago sentido de espiritualização…
Tudo está cheio de ruídos sonolentos
Que vêm do céu, que vêm do chão
E que esmagam o infinito do meu desespero.

[...]

No olhar aberto que eu ponho nas coisas do alto
Há todo um amor à divindade.
No coração aberto que eu tenho para as coisas do alto
Há todo um amor ao mundo.
No espírito que eu tenho embebido das coisas do alto
Há toda uma compreensão.

[...]

"Para Otávio [de Faria], que orientava meus primeiros passos literários, eu era [...] o continuador de Schmidt, o jovem acólito de sua missa poética", continua Vinícius em sua crônica fúnebre. O poeta Schmidt seria o responsável, no grupo, pela expressão lírica do pensamento católico que os unia. Uma pequena amostra da poesia de Schmidt, retirada de seu livro Pássaro Cego, de 1930, dá uma ideia do parentesco poético-existencial entre ele e o jovem Vinícius:

Positivamente, senti que a realidade me abandonava aos poucos.
Inutilmente um ruído de bonde se fez ouvir;
Inutilmente a ronda policial passou a cavalo, pela minha rua;
Inutilmente um passante assobiou uma canção qualquer.

É lógico que Vinícius de Moraes, o Poetinha, não se limitaria a esta tonalidade poética carregada de pessimismo, característica do lirismo de Schmidt. Mas o Poetinha só se libertaria desta solução espiritualista no final da década de 1930, a partir do livro Cinco Elegias, de 1943; ou seja, os livros iniciais (Forma e Exegese, de 1935; Ariana, a Mulher, de 1936; e Novos Poemas, de 1938; além, é claro, do primeiro, O caminho para a distância, de 1933) representam uma primeira fase do poeta, aliás bastante sintomática do período.
"Nós éramos todos 'de direita'. Torcíamos pela vitória do fascismo e líamos Nietzsche como quem vai morrer. 'Escreve com o teu sangue, e ver´s que teu sangue é espírito!' Ah, como amávamos essa palavra sangue... Ah, que conteúdo tinha para nós essa palavra espírito...", relembra ainda Vinícius, sem pudor de revelar os equívocos de sua juventude inicial. E vejamos como essas palavras ressoam na primeira poesia de Vinícius, através de um poema retirado ainda de O caminho para a distância:


Sacrifício

Num instante foi o sangue, o horror, a morte na lama do chão.
- Segue, disse a voz. E o homem seguiu, impávido
Pisando o sangue do chão, vibrando, na luta.
No ódio do monstro que vinha
Abatendo com o peito a miséria que vivia na terra
O homem sentiu a própria grandeza
E gritou que o heroísmo é das almas incompreendidas.

Ele avançou.
Com o fogo da luta no olhar ele avançou sozinho.
As únicas estrelas que restavam no céu
Desapareceram ofuscadas ao brilho fictício da lua.
O homem sozinho, abandonado na treva
Gritou que a treva é das almas traídas
E que o sacrifício é a luz que redime.

Ele avançou.
Sem temer ele olhou a morte que vinha
E viu na morte o sentido da vitória do Espírito.
No horror do choque tremendo
Aberto em feridas o peito
O homem gritou que a traição é da alma covarde
E que o forte que luta é como o raio que fere
E que deixa no espaço o estrondo da sua vinda.

No sangue e na lama
O corpo sem vida tombou.
Mas nos olhos do homem caído
Havia ainda a luz do sacrifício que redime
E no grande Espírito que adejava o mar e o monte
Mil vozes clamavam que a vitória do homem forte tombado na luta
Era o novo Evangelho para o homem da paz que lavra no campo.

"Depois cresci e vi que não era nada disso", continuaria Vinícius, que outro seria, muito diverso, deste inicial, perdido na distância do tempo... "Queria era namorar, conversar com os amigos, tomar sol na praia, empilhar pilhas de chope e escrever palavras simples", arremataria o Poetinha.

2 comentários:

Unknown disse...

Professor, depois que comprei um livro do "Poetinha" não sosseguei até adquirir a obra poética completa dele. E a constatação que tive foi: AINDA BEM que ele ultrapassou essa primeira fase! hehe
É como diz no final do seu post: "Depois cresci e vi que não era nada disso", "Queria era namorar, conversar com os amigos, tomar sol na praia, empilhar pilhas de chope e escrever palavras simples". E aí que aparece toda a genialidade dele!
Abraço.

Marcelo Magalhães disse...

Pois é, Rafael: inda bem mesmo que este "caminho para a distância" permaneceu na distância; mas são muito curiosos esses acidentes de percurso, não? lendo entrevista do Jorge Amado, ele diz que o Vinícius, que tinha liderança no grupo do católicos à direita, chegou a chamá-lo de "diabo", bem ao modo fundamentalista, pelas posições esquerdizantes do velho novo Jorge; acho muito curioso.. Abraço.