27.6.13

Aprendizado do Poetinha















Em "O Aprendiz de Poesia", crônica de 1953, Vinícius de Moraes fala de seu aprendizado como poeta, de maneira espontânea, afetiva e bem humorada. As referências são preciosas para o esboço de uma cartografia poética do autor de "O operário em construção". Confira o trecho abaixo.





          Eu havia sempre laborado na arte da poesia, desde os mais verdes anos. Às vezes, em meio aos brinquedos com os irmãos, na Ilha do Governador, fugia e ia me ocultar no quarto, a folha de papel diante de mim.
          Era tão estranho aquilo! Eu de nada sabia ainda, senão que tinha nove anos e Cocotá era o meu mundo, com sua praia de lodo, seu cajueiro e seus guaiamuns. Mas sabia vibrar em presença da folha branca que me pedia versos, viva como uma epiderme que pede carinho. Passavam-me os mais doces pensamentos, a imagem de minha mãe cantando, o rosto de Cacilda, minha namorada, da Escola Afrânio Peixoto, o beijo que Branca me dera - menina danada! - em plena Igreja São João Batista, quando as cabeças dos fiéis se haviam mansamente curvado para a bênção.
          Mas de alguma coisa carecia, que me arrastava logo a antologias (muito obrigado, Fausto Barreto; muito obrigado, Carlos de Laet!) ante as quais morria de inveja. Ah, escrever um soneto como o "Anoitecer", de Raimundo Correia! Minha maior tentação era, no entanto, meu próprio pai, Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta inédito, cujos manuscritos folheava deslumbrado, os mesmos que Bilac lera e cuja publicação aconselhara.
          Lembro que havia entre eles um soneto que levava meu nome, feito quando eu ainda no ventre materno. Cada vez que o lia, as lágrimas corriam-me livremente - e quantas não enxuguei sobre o papel amarelado para que não borrassem a linha antiga... Partia, ato contínuo, para a folha branca que me esperava, virgem, a procurar um tema, uma frase, uma palavra que me desse para abrir as portas daquela cidade cobiçada, cujos rumores chegavam-me maravilhosamente acústicos.
          Pus-me a imitar. Primeiro meu pai, mais à mão, menos preocupado com a glória literária, a que não dava grande crédito. Um dia, como um ladrão, levei comigo, enfiada por dentro da camisa de banho, uma longa pastoral em decassílabos, que fui mostrar a Célia, minha garota da Ilha, uma menina grande e mais velha, que se entretinha de mim.
          - Que beleza! - disse-me ela pondo as mãos nas minhas. - Você quer dar ele para mim? Covarde, dei. Hoje a pastoral de meu pai anda por aí, não sei onde, talvez na gaveta de uma cômoda no Encantado, onde morava quando vinha ao Rio; talvez em Miami, Acapulco ou Pago-Pago, para onde a tenha levado sua imensa tontice.

                                                                                   * 

          Muito plagiei, a princípio. Primeiro timidamente, depois como um possesso. Castro Alves, companheiro de noitadas de meu tio-avô Mello Moraes Filho, emprestou-me sua revolta condoreira. Olavo Bilac cedeu-me o diamante com que cortava os duros cristais de sua poesia. Guilherme de Almeida presenteou-me com seu geraldysmo, sua reticência ilustre, seu sorriso imóvel e seus punhos de renda. Menotti deu-me seu lorgnon, seus crachás, seu jucamulatismo. Descia de Antero a Júlio Dantas, perpetrando ceias, desvendando seios, ai de mim. Abria a antologia à toa e esperava. Casemiro? Casemiro! E assim se foi povoando de negros caracteres impecáveis um grande livro de capa preta, rubricado "Prefeitura do Distrito Federal", sobre que, tenho a impressão, um funcionário qualquer, meu parente, havia feito mão baixa. Mas que importava? Era um livro belo, um caderno de perfeito almaço, da grossura da minha ambição de criar poesia, vasto bastante para o menino que queria voar com asas roubadas, essas que tão cuidadosamente punha nas omoplatas para o exercício noturno dentro de seu quarto dentro da Ilha dentro da baía dentro da cidade dentro do país dentro do mar dentro do mundo.
      Um dia conheci um poeta como mandam as regras, com livro publicado e tudo o mais. Chamava-se João Lyra Filho, era moço nortista, apaixonado, e recitava Augusto dos Anjos por trás de uma cadeira. Augusto dos Anjos! Como me chocava aquela ousadia de palavras, a misturar a miséria ao sublime, o esterco à estrela, a podridão do túmulo à beleza da vida! Preferia Adelmar, para quem, naquele tempo, voltavam-se os olhos fiéis de João Lyra Filho como os do sacristão para o padre.
Certa vez, depois de uma noite de angústia, resolvi mostrar-lhe meus versos. Reunira-os sob o nome de "Foederis arca". Mas o poeta não gostou. Disse-me de modo brando que desistisse daquilo. Falou-me da predestinação poética, que eu não tinha. Meu negócio devia ser outro. Faltava-me aquele imponderável que os amantes do belo representam esfregando sutilmente a polpa do polegar contra a dos outros dedos, mas não como para indicar o vil metal: mais devagar, como a destilar a própria substância imanente da arte.
     O poetinha aprendiz desistiu? Coisíssima nenhuma! Prossegui firme, inabalável, entre alexandrinos, decassílabos e redondilhas, a perpetrar odes, sonetos, elegias, éclogas, cromos e acrósticos que dava fielmente às namoradas que fui semeando, da Gávea a Sabará.
          Era o martírio da poesia, em todo o meu desvario.

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