23.1.13

Mallarmé por ele mesmo: utopia do símbolo



       [...]
       Não era, você sabe, para um poeta viver de sua arte, mesmo rebaixando-a em vários níveis, quando ingressei na vida; e nunca o deplorei. Tendo estudado inglês simplesmente para melhor ler [Edgar Allan] Poe, fui aos vinte anos para a Inglaterra, a fim de fugir, principalmente; mas também para falar a língua e ensiná-la em algum canto, tranquilo e sem outro ganha-pão forçado: eu casara e isto era urgente.
      Hoje, vão-se mais de vinte anos e apesar da perda de tantas horas, acho, tristemente, que fiz bem. É que, afora os trechos de prosa e os versos de minha juventude e o resto, que lhes fazia eco, publicado em quase toda parte, cada vez que eram lançados os primeiros números de uma Revista Literária, sempre sonhei e tentei outra coisa, com uma paciência de alquimista, pronto a sacrificar-lhe toda a vaidade e satisfação, como outrora queimava-se toda a mobília e as vigas do telhado para alimentar o forno da Grande Obra. O quê? é difícil dizer: um livro, simplesmente, em vários tomos, um livro que seja um livro, arquitetônico e premeditado, e não uma coletânea das inspirações casuais por maravilhosas que fossem... Irei mais longe e direi: o Livro, convencido de que no fundo há um só, tentado à revelia por quem que tenha escrito, mesmo os Gênios. A explicação órfica da Terra, que é o único dever do poeta e o jogo literário por excelência: pois o próprio ritmo do livro, então impessoal e vivo, até em sua paginação, se justapõe às equações deste sonho, ou Ode.
     Eis, caro amigo, a confissão de meu vício, desnudado, que mil vezes enjeitei, com o espírito machucado ou cansado, mas ele me possui e talvez eu consiga; não fazer esta obra em seu conjunto (seria preciso ser não sei quem para tanto!) mas mostrar um fragmento executado, fazer cintilar a partir de um ponto sua autenticidade gloriosa, indicando todo o resto para o qual uma vida não basta. Provar pelas proporções feitas que este livro existe, e que conheci o que não poderei ter cumprido.
       [...]
(Mallarmé, Stéphane. Prosas de Mallarmé. Tradução Dorothée de Bruchard. Porto Alegre: Paraula, 1995, pg. 13-15; 
ilustra esta postagem o retrado de Mallarmé pintado em 1876 por Edouard Manet)

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