16.3.14

Euclides e Rui, Tristão e Freyre

Já confessei em sala de aula um prazer quase secreto: revelar ou lembrar equívocos do mestre Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Ataíde, nas suas avaliações críticas. Quanto a ele permaneço mesmo amigo do Oswald de Andrade, que o satirizava com o apelido "Tristinho de Ataúde", realizando em seus estudos uma espécie de sociologia com anjos. E hoje deparei com mais uma do Tristinho, dessa vez a respeito do Euclides da Cunha e da literatura regionalista, equívoco apontado por Gilberto Freyre em artigo sobre o autor de Os Sertões intitulado "Euclides da Cunha: revelador da realidade brasileira". É claro que não se trata de uma observação imparcial, como as do pantagruélico Oswald. Mas isso não elimina a relevância do dissenso freyreano.
 Eis o que aponta o autor de Casa grande & Senzala.

Gilberto Freyre.

          Há quem pense de Euclides da Cunha que, "embora nascido no Estado do Rio", ficou "intimamente ligado à literatura nordestina, cuja civilização particularista estudou em suas páginas sensacionais". É a opinião do Professor Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) à página 59 do seu Quadro sintético da literatura brasileira (Rio, 1956). A propósito do que acrescenta o eminente crítico:

          A região nordestina no Brasil é tão típica, em seus costumes, como a região amazônica, a mineira, a gaúcha ou a do litoral central.

          E lembra já haver outro crítico, o hoje acadêmico Viana Moog, "também romancista e ensaísta de valor", proposto uma "divisão da literatura brasileira baseada nessas idiossincrasias regionais". Com essas digressões – precedidas pelo reconhecimento de um "regionalismo" mineiro (Afonso Arinos) a que se teria juntado um "regionalismo" paulista (Valdomiro Silveira) sem que ao ilustre historiador do Quadro sintético tenha ocorrido a necessidade desses regionalismos e do gaúcho e do mero "pernambucanismo" de Joaquim Nabuco ou do superficial "sertanismo" de Catulo da Paixão Cearense" distinguir-se o muito mais complexo regionalismo em 1924 nascido no Recife – o Professor Alceu Amoroso Lima enche a meia página em que deveria ter fixado o seu julgamento sintético de Euclides pelo mestre atual mais admirado e respeitado da crítica literária no nosso País teria se resumido à moderna atitude de toda uma elite intelectual – a dos críticos literários nacionais – com relação ao autor de Os Sertões. Não se compreende que muito mais do que Euclides tenha merecido do Professor Amoroso Lima, isto é, dos seus julgamentos sintéticos, Rui Barbosa, um tanto arbitrariamente apresentado pelo crítico-historiador como "porventura a mais internacional das nossas grandes figuras literárias, no sentido amplo do termo" (...). Primazia que evidentemente cabe antes a Euclides ou a Machado que a Rui. É uma ilusão, essa, da parte de numerosos brasileiros, de ser Rui Barbosa – que tanto significou, na verdade, para nós, seus compatriotas, e ainda significa, como invulgar jurista-político em quem às virtudes acadêmicas de grande erudito nessas matérias, nas letras clássicas e na filologia, se junto o carisma de bravo homem de ação e de incansável doutrinador de liberalismo, por um lado e por outro, de casticismo – um brasileiro significativo para os meios cultos estrangeiros por qualquer motivo interessados no Brasil. [...] É uma ilusão imaginar-se Rui sob o aspecto de "figura literária" brasileira que tenha impressionado ou impressione ou seduza hoje, estrangeiros, por suas virtudes literárias. Ao afirmá-lo, o crítico e professor Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) resvala num mito que por sua condição mesmo de crítico devia ser o primeiro a retificar. [...]
[Freyre, Gilberto. "Euclides da Cunha: revelador da realidade brasileira".
In: Cunha, Euclides da. Obra completa, vol. I, pp. 30-31]


Um comentário:

claudio rodrigues disse...

amigo, que tal fazer dessa nota um artigo? que blog bom! e vc nem o apresenta, né? vou bisbilhotar aqui.