2.6.12

do Diário Íntimo de Lima Barreto

Tendo sido publicado primeiramente em folhetins no Jornal do Comércio em 1911, Triste fim de Policarpo Quaresma sairia impresso em volume apenas em 1916 (pouco antes do Carnaval). Em 1914, o escritor carioca descrevia sua melancólica situação, que lembra o ambiente com que o major Quaresma convive. Segue um trecho da primeira anotação do ano:


20 de abril de 1914

[...]
[...] Despeço-me de um por um dos meus sonhos. Já prescindo da glória, mas não queria morrer sem uma viagem à Europa, bem sentimental e intelectual, bem vagabunda e saborosa, como a última refeição de um condenado à morte.
A minha casa me aborrece. O meu pai delira constantemente e o seu delírio tem a ironia dos loucos de Shakespeare. Meus irmão, egoístas como eles, queriam que eu lhes desse tudo o que ganho e me curvasse à Secretaria da Guerra.
O que me aborrece mais na vida é esta secretaria. Não é pelos companheiros, não é pelos diretores. É pela sua ambiência militar, onde me sinto deslocado e em contradição com a minha consciência.
Não posso suportá-la. É o meu pesadelo, é a minha angústia.
Tenho por ela um ódio, um nojo, uma repugnância que me acabrunha.
Queria ganhar menos, muito menos, mas não suportar aqueles generais do Haiti que, parece, comandaram ou vão comandar em Austerlitz.
Demais, o meu feitio é tão oposto àquela atmosfera de violência, de opressão, de bajulação, que me enche de revolta. Não sei o que hei de arranjar para substituir aquilo, e a minha gana de sair de lá é tão grande, que não me promovem, não me fazem dar um passo à frente.
[...]
Para os jornais daqui estou incompatível. Podia tentar a aventura fora, mas não tenho liberdade. Era preciso que estivesse só, só.
Enfim, a minha situação é absolutamente desesperadora, mas não me mato.
Quando estiver bem certo de que não encontrarei solução, embarco para Lisboa e vou morrer lá, de miséria, de fome, de qualquer modo.
Desgraçado nascimento tive eu! Cheio de aptidões, de boas qualidades, de grandes e poderosos defeitos, vou morrer sem nada ter feito.
Seria uma grande vida, se tivesse feito grandes obras; mas nem isso fiz.

(Barreto, Lima. Diário íntimo: memórias. São Paulo: Brasiliense, 1958, p. 171-2)

2 comentários:

Káren Andrade disse...

Pobre Quaresma...digo, pobre Lima!

Stefanie disse...

O Lima foi um deslocado... o mundo não estava preparado para alguém tão especial, alguém que entendia a alma como ninguém... "o primeiro criador de almas"! Sua tristeza era a tristeza dos bons, de quem tentou e nãio conseguiu, de quem sonhou e não realizou... Ele fez grandes obras sim, mas nunca alcançou reconhecimento.