15.10.11

Os Lusíadas


Eis as primeiras estrofes do Canto I de Os Lusíadas, epopeia monumental de Luís de Camões. Transcrevem-se aqui as dezoito estrofes iniciais do canto de abertura, nas quais figuram a proposição (apresentação do assunto e dos herois, nas estrofes 1, 2 e 3), a invocação (em que o poeta invoca as Tágides, ninfas do rio Tejo, pedindo-lhes inspiração para escrever, nas estrofes 4 e 5) e o oferecimento (em que o poeta dedica seu canto ao rei D. Sebastião, da estrofe 6 a 18). A partir das estrofe 19, inicia-se a narração. As estrofes são regulares (ou seja, apresentam a mesma estrutura ao longo de todo o poema), configurando sempre o que chamamos de oitava rima (organizada em versos decassílabos, dipostos no seguinte esquema de rima: abababcc). O modelo de Camões seria imitado por alguns poetas importantes da literatura brasileira, o que constitui o "ciclo épico caminiano", iniciado entre nós por Bento Teixeira (com o poemeto Prosopopeia). Vamos ao "engenho e arte" de Camões:




As armas e os barões assinalados,
Que da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
E em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;


E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis, que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles, que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.


Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram,
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram,
Que eu canto o peito ilustre Lusitano
A quem Netuno e Marte obedeceram;
Cesse tudo o que a Musa antígua canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.


E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mim um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mim vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloquo e corrente,
Porque de vossas águas, Febo ordene
Que não tenham inveja às de Hipoerene.


Dai-me uma fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda,
Que se espalhe e se cante no universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.


E vós, ó bem nascida segurança
Da Lusitana antiga liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Para do mundo a Deus dar parte grande;


Vós, tenro e novo ramo florescente
De uma árvore de Cristo mais amada
Que nenhuma nascida no Ocidente,
Cesárea ou Cristianíssima chamada;
Vede-o no vosso escudo, que presente
Vos amostra a vitória já passada,
Na qual vos deu por armas, e deixou
As que Ele para si na Cruz tomou;


Vós, poderoso Rei, cujo alto Império
O Sol, logo em nascendo, vê primeiro,
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando desce o deixa derradeiro;
Vós, que esperamos jugo e vitupério
Do torpe Ismaelita cavaleiro,
Do Turco oriental, e do Gentio,
Que inda bebe o licor do santo rio;


Inclinai por um pouco a majestade
Que nesse tenro gesto vos contemplo,
Que já se mostra qual na inteira idade,
Quando subindo ireis ao eterno Templo;
Os olhos da real benignidade
Ponde no chão; vereis um novo exemplo
De amor dos pátrios feitos valerosos,
Em versos divulgado numerosos;


Vereis amor da pátria não movido
De prémio vil, mas alto e quase eterno,
Que não é prémio vil ser conhecido
Por um pregão do ninho meu paterno.
Ouvi: vereis o nome engrandecido
Daqueles de quem sois senhor superno,
E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de til gente.


Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,
Fantásticas, fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos, como nas estranhas
Musas, de engrandecer-se desejosas.
As verdadeiras vossas são tamanhas,
Que excedem as sonhadas, fabulosas,
Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro,
E Orlando, inda que fora verdadeiro.


Por estes vos darei um Nuno fero,
Que fez ao Rei o ao Reino tal serviço,
Um Egas e um Dom Fuas, que de Homero
A cítara para eles só cobiço;
Pois pelos doze Pares dar-vos quero
Os doze de Inglaterra e o seu Magriço;
Dou-vos também aquele ilustre Gama,
Que para si de Eneias toma a fama.


Pois se a troco de Carlos, Rei de França,
Ou de César, quereis igual memória,
Vede o primeiro Afonso, cuja lança
Escura faz qualquer estranha glória,
E aquele que a seu Reino a segurança
Deixou com a grande e próspera vitória,
Outro Joane, invicto cavaleiro,
O quarto e quinto Afonsos e o terceiro.


Nem deixarão meus versos esquecidos
Aqueles que nos Reinos lá da Aurora
Se fizeram só por armas tão subidos,
Vossa bandeira sempre vencedora:
Um Pacheco fortíssimo, e os temidos
Almeidas por quem sempre o Tejo chora,
Albuquerque terríbil, Castro forte,
E outros em quem poder não teve a morte.


E enquanto eu estes canto, e a vós não posso,
Sublime Rei que não me atrevo a tanto
Tomai as rédeas vós do Reino vosso:
Dareis matéria a nunca ouvido canto.
Comecem a sentir o peso grosso
Que pelo mundo todo faça espanto
De exércitos e feitos singulares
De África as terras e do Oriente os mares.


Em vós os olhos tem o Mouro frio,
Em quem vê seu exício afigurado;
Só com vos ver o bárbaro Gentio
Mostra o pescoço ao jugo já inclinado.
Tethys todo o cerúleo senhorio
Tem para vós por dote aparelhado,
Que afeiçoada ao gesto belo e tenro
Deseja de comprar-vos para genro.


Em vós se vêm da Olímpica morada
Dos dois avós as almas cá famosas,
Uma na paz angélica dourada,
Outra pelas batalhas sanguinosas;
Em vós esperam ver-se renovada
Sua memória e obras valerosas,
E lá vos tem lugar, no fim da idade,
No Templo da suprema eternidade.


Mas enquanto este tempo passa lento
De regerdes os povos que o desejam,
Dai vós favor ao novo atrevimento,
Para que estes meus versos vossos sejam,
E vereis ir cortando o salso argento
Os vossos Argonautas, por que vejam
Que são vistos de vós no mar irado,
E costumai-vos já a ser invocado.

[edição utilizada para esta transcrição: Os Lusíadas. Edição escolar comentada por Otoniel Mota. São Paulo: Melhoramentos, 1948]

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