14.3.11

Euclides da Cunha: barroco científico





Um das mais notáveis análises da obra de Euclides da Cunha, peça fundamental da fortuna crítica sobre o autor d'Os Sertões (1902), é o ensaio “Euclides da Cunha: revelador da realidade brasileira”, de Gilberto Freyre. Com linguagem sedutora, o escritor pernambucano apresenta aspectos centrais da produção intelectual de Euclides – “um dos escritores brasileiros que maior influência vêm exercendo sobre a gente do seu país e maior atenção da parte de estrangeiros vêm atraindo para a cultura, em geral, e para as letras, em particular, de um ainda obscuro Brasil”. Os trechos que seguem foram retirados das obras completas de Euclides da Cunha (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, vol. I).

“A verdade é que Euclides da Cunha escreveu perigosamente. Transpôs para a arte de escrever o viver perigosamente de que falava Nietzsche. Escreveu num estilo não só barroco – esplendidamente barroco – como perigosamente próximo do precioso, do pedante, do bombástico, do oratório, do retórico, do gongórico, sem afundar-se em nenhum desses perigos. Deixando-o apenas tocar por eles; roçando por vezes pelos seus excessos; salvando-se como um bailarino perito em saltos-mortais, de extremos de má eloqüência que o teriam levado à desgraça literária e ao fracasso artístico. Que o teriam tornado outro Coelho Neto.
É um escritor cujo gosto, sem ser o convencionalmente bom, dos clássicos medidos e claros, nos dá a idéia de estar sempre em perigo: o perigo de tornar-se absolutamente mau. Mau segundo todos os padrões: os clássicos e os anticlássicos. Apenas esse risco nunca se realiza de todo. Nunca passa inteiramente de risco à desgraça literária. O autor d’Os Sertões nunca chega a ser catastrófico em seus colapsos de má eloqüência. Euclides da Cunha não nos desaponta em momento algum com uma só expressão de inconfundível mau gosto; ou de indiscutível preciosismo; ou de absoluto gongorismo. O que nele é freqüente é o gosto duvidoso, ambíguo e, por conseguinte, discutível.
[...]
Euclides foi escritor que escreveu quase sempre declamando [...]. Ouvido, Euclides vem sendo há mais de cinquenta anos por muitos dos que o vêm lendo; entendido por outros tantos; admirado por quase todos. Pois é escritor dos que, mesmo quando não são plenamente entendidos, são agradáveis de ser ouvidos através do que escrevem. Escritores nascidos com boa voz. Nascidos escritores sonoros e que potentemente sonoros se conservam, mesmo quando suas mensagens perdem a potência intelectual.” (p. 18)

Gilberto Freyre é hábil analista da escrita monumental de Euclides, a qual descreve através de um sem número de formulações conceptistas. Musical também, também ele nascido com boa voz, apresenta este “revelador da realidade brasileira” que foi Euclides de modo saboroso. Dois outros trechos interessantíssimos seguem adiante:

“Euclides pertence ao número de autores que não se deixam buscar ou procurar pelo leitor: vêm ao seu encontro. Apresentam-se. Exibem-se. Nenhum escritor de língua portuguesa mais presente na sua literatura do que ele. Nenhum mais ostensivo na sua presença.” (p. 23)

Caráter marcante da escrita de Euclides, ela evoca a figura de outro escritor do momento pré-modernista no Brasil – a de Augusto dos Anjos. O poeta paraibano do Eu decalca com traços fortes o eu lírico, que gesticula enfaticamente entre as “perpétuas grades” de seus versos singularíssimos. E não é preciso muita investigação para que encontremos a figura do poeta a apresentar-se na gesticulação desse eu lírico, tantas vezes autobiográfico. Passemos ao último trecho selecionado, que trata do “brasileirismo” de Euclides:

“Seu próprio brasileirismo, por vezes enfático, talvez fosse uma expressão do que o autor julgava ser, em si mesmo, presença ameríndia: tapuia. Admitia que fosse um tapuio modificado por outras presenças – pela ‘grega’ e pela ‘celta’. Mas a consciência de ser homem de sangue ameríndio parece ter-se tornado nele outra consciência: a de dever ser um escritor com alguma coisa de não-europeu e até de antieuropeu em sua visão do ambiente nativo e em sua expressão ou em sua interpretação desse ambiente. Não só escritor: homem público.” (p. 23)



[o retrato de Euclides acima é da lavra de Cândido Portinari]

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