Sobre o soneto "
Náufrago", importa inicialmente
localizá-lo na obra de Alphonsus de Guimaraens. Integra o livro
Kiriale, primeiro livro a ser escrito
pelo poeta mineiro, entretanto publicado somente em 1902, após o aparecimento
de
Setenário das Dores de Nossa Senhora,
Câmara Ardente e
Dona Mística (todos publicados em 1899). A lista dos títulos é
significativa, pois evoca o universo do misticismo católico que a poesia de
Alphonsus tão ternamente canta. Como sugeriu Alfredo Bosi, podemos dizer que o
Solitário de Mariana tratou de um só tema em sua poesia de tonalidade elegíaca.
"Náufrago" no entanto é uma curiosíssima variação do tema (da morte
da amada), focalizando com mais vagar a figura
amedrontada do próprio eu lírico. O poema abre o
Caput
II, intitulado "Os sonetos", que traz uma sugestiva
epígrafe, recorte de um soneto de Charles
Baudelaire:
"J'étais mort sans surprise, et la terrible aurore/ M'enveloppait — Eh
quoi! n'est-ce donc que cela!". O tema da morte está posto desde o princípio,
e o poema em questão não fugirá dele. O título "Náufrago" já sugere a
apresentação do eu lírico, que irá encarnar completamente a metáfora no terceto
final ("Sou um navio sem mastros."). O soneto trata portanto desse
indivíduo que "teme tudo", vindo de alguma "noite sem luar"
e perdido nas "trevas sem fim"; algum "mistério fatal" o
amedronta, além da própria "terra", o que o faz
padecer,
chorar,
ansiar; a seus pés "a saudade
tirita", enquanto o eu lírico caminha "para a morte alucinado e
só"; por fim, a constatação, a fatalidade tremenda: ser "um navio sem
mastros", à deriva retardando sua caminhada em direção à morte. Os recursos
poéticos utilizados por Alphonsus para sugerir o ambiente que ficou esboçado
nas linhas acima são característicos de sua poesia. O primeiro verso, que como
os demais se estrutura na forma tradicional do alexandrino (doze sílabas), é
bastante sugestivo em sua sonoridade marcada pela recorrência das dentais
("E
temo, e
temo
tu
do, e
nem sei o que
temo"); a sugestão sonora nos evoca o eu lírico trêmulo e
tateante nas
trevas em que se
encontra; o segundo verso, ao contrário do primeiro (de cadência cheia de
pausas), tem uma sintaxe continuada e corredia, o que equivaleria à própria
errância do olhar do eu lírico na escuridão, olhar perdido na vastidão das
trevas; assim como o terceiro verso, em que figura a expressão "de extremo
a extremo", reforçando esta
medonha
vastidão, é encerrado por reticências que a realçam (pontuação típica da poesia
simbolista). Voltando aos aspectos temáticos, seria interessante tomar a
segunda estrofe como indicadora de certa feição decadentista do poeta: o eu
lírico afirma que a própria terra o
amedronta,
como se fosse ele deslocado neste espaço tristemente pedestre, aguardando
apenas o momento em que sua alma se transformará "em astros", seu
corpo irá se desfazer "em pó" (o que recorda o destino do corpo e da
alma de "Ismália", uma das
canções
do livro
Pastoral dos crentes do amor e
da morte, livro póstumo de 1923); o primeiro verso desta segunda estrofe
utiliza novamente o recurso de uma sonoridade sugestiva, recorrendo mais uma
vez às labiais ("Ame
dron
ta-me a
terra, e se a con
templo,
tremo"); o segundo verso traz
um vocábulo sintomático da formação de Alphonsus como poeta simbolista, leitor
de poetas e escritores caros ao espírito da estética simbolista, como é o caso
de Edgar Allan
Poe, que pode ser
evocado pelo uso da palavra "corvejar" (vale lembrar que o corvo de Poe já fora evocado em poema anterior do mesmo livro, "A cabeça de corvo", ). O
primeiro terceto faz referência a uma "saudade", que aparece
personificada pela disposição espacial em que é colocada ("aos meus
pés") e pelo verbo a ela relacionada ("A saudade
tirita"); esta saudade, personificada, "vai deixando/
Atrás de si a mágoa e o sonho..."; esta saudade poderia evocar o tema da
morte da amada, ou da amada morta, que aqui é muito rapidamente referida; pois
logo em seguida, subitamente, o eu lírico volta-se para si: "
E eu, miserando"; a certeza
terrífica e confortante da morte faz o eu lírico seguir "alucinado e
só". Por fim o terceto derradeiro, em que um grito parece ser lançado na
solitária alucinação do eu lírico (vale lembrar o quadro "O grito", do pintor expressionista Edvard Munch): "O naufrágio, meu Deus!"; antes de perceber-se como
"um navio sem mastros", o eu lírico percebe a
imagem do
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O grito (1893), de Edvard Munch. |
naufrágio, fora de si, símbolo de si, de sua condição de
"blasfemo" e "miserando"; e os dois versos finais apontam
para a cisão entre corpo e alma, que aparece em outras composições de
Alphonsus, e que mais uma vez insiste na temática macabra e no tom elegíaco que
marcam a particular poesia do "Pobre Alphonsus" (chamado alhures de
"poeta lunar", aqui privado desse seu elemento característico); etc.
etc.