28.11.12

Aos alunos de Literatura Brasileira III

Gostaria de informar aos alunos de Literatura Brasileira III, turmas 1 e 2, que combinaremos as perspectivas de estudo para os seminários na sexta-feira, dia 30 de novembro. Havia eu dito que publicaria neste picadeiro a definição das perspectivas, mas creio que antes é preciso que façamos ajustes na composição das equipes, pois algumas delas ficaram com pouquíssimos integrantes, fazendo com que o número de equipes ultrapassasse o previsto em cronograma. Portanto, peço a todos que não deixem de comparecer no dia 30 para que possamos conversar sobre isso e para definirmos enfim as equipes e as perspectivas de estudo de cada uma. Até lá.

23.11.12

Literatura Brasileira III: exercício de revisão comentado



Literatura Brasileira IIIExercício de Revisão


  1. Relacione os aspectos indicados nos textos abaixo com a produção literária de Lima Barreto e Euclides da Cunha (estilo, gênero e tópicos temáticos):

Texto 1:
O Brasil é mais complexo, na ordem social econômica, no seu próprio destino, do que Portugal.
A velha terra lusa tem um grande passado. Nós não temos nenhum; só temos futuro. E é dele que a nossa literatura deve tratar, da maneira literária. Nós nos precisamos ligar; precisamos nos compreender uns aos outros; precisamos dizer as qualidades que cada um de nós tem, para bem suportarmos o fardo da vida e dos nossos destinos. Em vez de estarmos aí a cantar cavalheiros de fidalguia suspeita e damas de uma aristocracia de armazém por atacado, porque moram em Botafogo ou Laranjeiras, devemos mostrar nas nossas obras que um negro, um índio, um português ou um italiano se podem entender e se podem amar, no interesse comum de todos nós.
A obra de arte, disse [Hippolyte] Taine, tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem. Eles estão aí, à mão, para nós fazermos grandes obras de arte.
[...]
Hoje, quando as religiões estão mortas ou por morrer, o estímulo para elas é a arte. Sendo assim, eu como literato aprendiz que sou, cheio dessa concepção, venho para as letras disposto a reforçar esse sentimento com as minhas pobres e modestas obras.
O termo "militante" de que tenho usado e abusado, não foi pela primeira vez empregado por mim.
O Eça [de Queiroz], por quem não cesso de proclamar a minha admiração, empregou-o, creio que nas Prosas Bárbaras, quando comparou o espírito da literatura francesa com o da portuguesa.
Pode-se lê-lo lá e lá o encontrei. Ele mostrou que desde muito as letras francesas se ocuparam com o debate das questões da época, enquanto as portuguesas limitavam-se às preocupações da forma, dos casos sentimentais e amorosos e da idealização da natureza Aquelas eram – militantes, enquanto estas eram contemplativas e de paixão.
(Lima Barreto, “Literatura Militante”. In: _____. Impressões de leitura, p. 72-3).

Texto 2:


[...] Num ponto apenas vacilo – o que se refere ao emprego dos termos técnicos. Aí, a meu ver, a crítica não foi justa. / Sagrados pela ciência e sendo de algum modo, permita-me a expressão, os aristocratas da linguagem, nada justifica o sistemático desprezo que os homens de letras – sobretudo se considerarmos que o consórcio da ciência e da arte, sob qualquer de seus aspectos, é hoje a tendência mais elevada do pensamento humano. / Um grande sábio e um notável escritor, [Marcellin] Barthelot, definiu, fazem poucos anos, o fenômeno, no memorável discurso com que entrou na Academia Francesa. / Segundo se colhe de suas deduções rigorosíssimas, o escritor do futuro será forçosamente um polígrafo; e qualquer trabalho literário se distinguirá dos estritamente científicos, apenas, por uma síntese mais delicada [...].
(Cunha, Euclides da. “[Carta] A José Veríssimo”, In: _____. Obra completa, vol. II, p.653)


2.      Considerando ainda os aspectos desenvolvidos nos dois textos da questão anterior, leia e analise o poema que segue, de Augusto dos Anjos, procurando localizar a obra poética do poeta paraibano no momento pré-modernista brasileiro.

APOCALIPSE

Minha divinatória Arte ultrapassa
Os séculos efêmeros e nota
Diminuição dinâmica, derrota
Na atual força, integérrima, da Massa.

É a subversão universal que ameaça
A Natureza, e, em noite aziaga e ignota,
Destrói a ebulição que a água alvorota
E põe todos os astros na desgraça!

São despedaçamentos, derrubadas,
Federações sidéricas quebradas...
E eu só, o último a ser, pelo orbe adiante,

Espião da cataclísmica surpresa,
A única luz tragicamente acesa
Na universalidade agonizante!


  1. A partir da leitura comparativa dos textos abaixo, caracterize o momento literário do pré-modernismo, indicando temas fundamentais, escolhas formais e feições estilísticas. Exemplifique com partes dos textos apresentados.

Texto 1:
O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo – cai é o termo – de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.
É o homem permanentemente fatigado.
Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.
Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.
Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Impertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.
Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento, em todos os pormenores da vida sertaneja – caracterizado sempre pela intercadência impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas.
É impossível idear-se cavaleiro mais chucro e deselegante; sem posição, pernas coladas ao bojo da montaria, tronco pendido para a frente e oscilando à feição da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Nesta atitude indolente, acompanhando morosamente, a passo, pelas chapadas, o passo tardo das boiadas, o vaqueiro preguiçoso quase transforma o campeão que cavalga na rede amolecedora em que atravessa dois terços da existência.
Mas se uma rês alevantada envereda, esquiva, adiante, pela caatinga garranchenta, ou se uma ponta de gado, ao longe, se trasmalha, ei-lo em momentos transformado, cravando os acicates de rosetas largas nas ilhargas da montaria e partindo como um dardo, atufando-se velozmente nos dédalos inextricáveis das juremas.

Texto 2:
O Lázaro da Pátria


Filho podre de antigos Goitacases,
Em qualquer parte onde a cabeça ponha,
Deixa circunferências de peçonha,
Marcas oriundas de úlceras e antrazes.

Todos os cinocéfalos vorazes
Cheiram seu corpo. À noite, quando sonha,
Sente no tórax a pressão medonha
Do bruto embate férreo das tenazes.

Mostra aos montes e aos rígidos rochedos
A hedionda elefantíase dos dedos...
Há um cansaço no Cosmos... Anoitece.

Riem as meretrizes no Casino,
E o Lázaro caminha em seu destino
Para um fim que ele mesmo desconhece!



4.       Caracterize a literatura produzida no Brasil no momento pré-modernista (nos dois sentidos referidos por Alfredo Bosi), fazendo referência a um escritor que você considere encarnar os traços marcantes do período. Indique autores e obras.
  
5.       Explique a seguinte afirmação de Alfredo Bosi, não esquecendo de dar exemplos que ilustrem sua exposição: “Sem forçar contrastes (e excetuando sempre a obra de Augusto dos Anjos), será lícito dizer que a poesia representa, no primeiro vintênio do século, o elemento conservador de motivos e formas, ao passo que a prosa de ficção preludia, em seus melhores representantes, os interesses da geração de 22 e, em particular, dos anos 30.” (O Pré-Modernismo, p. 55).



Comentários:
1. Os textos que compõem a questão 1 evidenciam posturas intelectuais e/ou artísticas que marcaram o período pré-modernista.São posturas diametralmente opostas, entre as quais cabe um sem-número de variações no modo de participar da vida cultural do início do século XX. As duas posturas extremas são as seguintes: a produção literária entendida como "sorriso da sociedade", como a chamou Afrânio Peixoto, literatura ornamental e hedonista, que passava ao largo das questões candentes da época, todas elas compondo a problemática das questões sociais ("a era, que se abre, é a era da questão social", diria Rui Barbosa, figura importante do período); e, do outro lado, a "literatura militante", como pregava Lima Barreto (utilizando-se de expressão inicialmente usada por Eça de Queiroz), postura engajada no tratamento das questões sociais, a compreensão da "literatura como missão" (expressão que intitula livro de Nicolau Sevcenko sobre o período). Lima Barreto foi ficcionista engajado, poderíamos dizer, que com suas "pobres e modestas obras" colocou em cena os vícios de uma sociedade sempre pronta a renovar na manutenção das desigualdades socioculturais. Sobre M. J. Gonzaga de Sá, quarto romance de Lima Barreto, disse Alfredo Bosi que "constui [...] a mais curiosa síntese de documentário e ideologia que conheceu o romance brasileiro antes do Modernismo"; e acrescenta, referindo-se ao protagonista do romance: "Gonzaga de Sá vem a ser o espectador a um tempo interessado e cético daquele Rio dos princípios do século, onde os pretensos intelectuais macaqueavam as ideias e os tiques da cultura francesa sem voltar os olhos para os desníveis dolorosos que gritavam ao seu redor; onde a Abolição, sem realizar as esperanças dos negros, prolongou as agruras dos mestiços; onde, enfim, a República, em vez de preparar a democracia econômica, instalou solidamente os oligarcas do campo estribando-os no tripé de uma burocracia alienada, um militarismo estreito e uma imprensa impotente, quando não venal". O romance de Lima Barreto oscilou entre o fundamento pessoal e o painel social, em que realismo e memorialismo depõem o tom estilístico; o espaço literário de Lima Barreto, o espaço que constitui sua fundamentação narrativa, foi o espaço urbano carioca, com o entusiasmo dos que acreditavam no lema governamental do momento -- "O Rio civiliza-se" -- a sufocar o lamento dos desfavorecidos, colocados à sombra do processo civilizatório de então; o trecho seguinte, em que fala o próprio Gonzaga de Sá (e Lima Barreto fala através dele), é sugestivo quanto à temática barretiana: "A nossa emotividade literária só se interessa pelos populares do sertão, unicamente porque são pitorescos e talvez não se possa verificar a verdade de suas criações". Já Euclides da Cunha, que compartilha com Lima Barreto a ideia de uma "literatura como missão", não empunhou como arma de combate a ficção: "me desviei sobremodo dessa literatura imaginosa, de ficções, onde desde cedo se exercita e revigora nosso subjetivismo", iria depor Euclides. Sobre sua obra mais contundente, Os Sertões, reflete Antonio Candido: "Livro posto entre a literatura e a sociologia, Os sertões assinalam um fim e um começo: o fim do imperialismo literário, o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira (no caso, as contradições contidas na diferença de cultura entre as regiões litorâneas e o interior". Quanto aos gêneros literários manejados por Euclides, é esclarecedora a indicação de Nicolau Sevcenko, apontando para a distribuição de sua obra em cinco gêneros: "historiografia, geografia, crônica, epistolografia e poesia, versadas em estreito consórcio com o comentário científico". Espécie de ensaio literário portanto, em que um "estilo elevado híbrido" se forja (na expressão de Sevcenko, mais uma vez), e que se fundamenta na noção de escritor polígrafo, ou seja, o escritor com domínio enciclopédico de variados saberes científicos que não abdica da expressão literária rebuscada e artística. Estilo que foi chamado de "barroco científico", e que Gilberto Feryre comentaria ao reparar "na sua adjetivação quase sempre crespa, estridente, mais aguda que grave; nas suas mais repetidas procuras ou recorrência de efeitos teatralmente musicais".

2. Recordo a descrição do poeta paraibano traçada por seu amigo Orris Soares: "um pássaro molhado, todo encolhido nas asas, molhado de chuva" -- que por sua vez remete a "O Albatroz", de Charles Baudelaire, retrato do poeta, tipo generalizado, entre os fins do século XIX francês e o início do XX brasileiro. Essa recordação desdobrada vem a propósito da leitura de "Apocalipse", poema de Augusto dos Anjos e texto para análise da questão 2. "Apocalipse", que em sentido etimológico equivale "ato de descobrir, descoberta, revelação", é uma espécie de profissão de fé do poeta do Eu (1912), ou seja, a declaração dos seus pricípios poéticos/estéticos. Nele o poeta contempla sua própria arte, sua "divinatória Arte",  em relação monista com a "Natureza", também chamada de "Massa", em que ele, o próprio poeta, é "A única luz tragicamente acesa". Mas vamos por partes, e tomemos o dito até aqui por introdução. Primeiramente caberia o comentário sobre o aspecto formal do poema, significativo para compreendermos não apenas a poética de Augusto dos Anjos como também as concepções poéticas do tempo, ainda tão marcadas pelo arraigado gosto parnasiano. O poeta abedece ao padrão tradicional do soneto italiano (ou petrarquiano), desdobrado em dois quartetos e dois tercetos. O verso utilizado é o decassílabo, metro consagrado na tradição do soneto em língua portuguesa. Segundo Alfredo Bosi, Augusto dos Anjos "é um poeta eloquente. O dramático de suas tensões, que às vezes tende para o trágico do inelutável, encontra forma ideal em quartetos decassílabos fortemente cadenciados, em que são copiosos os versos sáficos [decassílabo com tonicidade na 4a, 8a e 10a sílabas], de manifesta sonoridade, as rimas ricas e as palavras raras e esdrúxulas". Assim como Euclides da Cunha, desenvolve uma "adjetivação frequentemente crespa" (expressão de Gilberto Freyre), composta por vocabulário marcado pela ênfase dramática e pela perspectiva do monismo. O eu lírico do "Apocalipse", como não poderia deixar de ser, é personagem enfaticamente dramático, e surge já no pórtico do poema, apontando para o caráter de sua arte: "Minha divinatória Arte ultrapassa/ Os século efêmeros"; ou seja, a Arte deste eu apocalíptico é escatológica ("doutrina que trata do destino final do homem e do mundo", na definição de Houaiss); ela ultrapassa as contingências do tempo e, simultaneamente, observa a fatalidade da desintegração final de todas as coisas do universo ("nota/ Diminuição dinâmica, derrota/ Na atual força, integérrima, da Massa"). Aliás, ao falar de "força, integérrima, da Massa", o poeta revela seu monismo, considerando a organização cósmica como consequência de uma única força universal. Força que aliás sofre pela "subversão universal que ameaça/ A Natureza"; esta "subversão universal" desvirtua tanto a ebulição da água quanto "põe todos os astros na desgraça". Poderíamos dizer que, neste segundo quarteto, há uma correspondência caótica entre todas as coisas, que nos faz pensar nas "Correspondances" baudelaireanas, mas em plena configuração degenerativa. No primeiro terceto, é sensível o uso de uma sonoridade expressiva, através de um ritmo cadenciado e do uso de aliterações; reparem que os dois primeiros versos deste primeiro terceto alternam a sonoridade das consoantes d e s, figurando sonoramente a ideia de desintegração geral; curiosidade especial é o uso, nesses mesmos versos, da expressão "Federações sidéricas quebradas", que mistura vocabulário da cosmologia (sidérica) e da política (federações, que pode nos fazer pensar também na República brasileira do começo do século XX); ressalte-se o uso das reticências, pontuação típica da poética simbolista, que suspende a sequência semântica do verso e sugere aspectos não verbalizados; e, para encerrar este primeiro tercerto, a presença novamente dramática, em desesperada gesticulação teatral, do eu lírico (E eu só, o último a ser, pelo orbe adiante"). No último terceto, o eu escatológico de "Apocalipse" denuncia sua desgraça, a de ser "Espião da cataclísmica surpresa/ A única luz tragicamente acesa/ Na universalidade agonizante!"; o "Apocalipse" que o poeta testemunha, portanto, seria processo contínuo e perpétuo, visível somente àquele que é "A única luz tragicamente acesa"; o último verso evidencia por fim a dialética dramática entre eu e cosmos, o que poderíamos chamar de "a cosmo-agonia de Augusto dos Anjos", na expressão de Lúcia Helena.

Literatura Brasileira II: exercício de revisão comentado



Universidade Federal do Ceará
Centro de HumanidadesCurso de LetrasDepartamento de Literatura
Literatura Brasileira IIProfessor: Marcelo MagalhãesExercícios de Revisão


1. Leia o comentário crítico abaixo e responda aos itens que seguem:
[...]
Nos seus livros vive a sociedade brasileira do século passado [XIX]: se não o preocuparam os problemas metafísicos, é que pintou uma época nesse ponto sem inquietações; se a sua obra não impõe uma conclusão moral, há nela esparsa, muita reflexão finíssima, de rara profundidade, onde o pensador se revela, e também o moralista.
E quanta humanidade nos seus tipos! As suas figuras femininas, admiráveis, porejantes de um sensualismo contido, bem tropicais, formam uma vivíssima galeria. As mulheres de Machado de Assis mereceriam um estudo à parte. No romance brasileiro, mesmo no romance moderno, a mulher é quase sempre o ponto fraco. Em Machado, ao contrário, a sensibilidade penetra no recesso dos meandros femininos.
É que ele foi, realmente, inteiramente, um romancista, um criador de tipos que deveriam existir. Soube realizar essa transposição tão difícil da vida para a arte, não amesquinhando a primeira, não desvirtuando a segunda. E soube se engrandecer diminuindo-se, vivendo para a sua obra, vivendo dentro dela.
[...]
A glória de ter quase criado uma língua, de ter escrito em brasileiro antes de ninguém, cabe-lhe sem contestação. O assunto brasileiro já fora explorado, e até exagerado. José de Alencar já pusera em moda o nativismo e o indianismo literário. Mas quem ousou primeiro escrever esse português brando e claro que é o brasileiro, foi o cronista da Semana.

(Pereira, Lúcia M. “Machado em síntese”. Em: _____. A leitora e seus personagens.
Rio de Janeiro: Graphia, 1992, p. 196)

a) Lúcia Miguel Pereira, avaliando a obra do criador de Dom Casmurro, indica algumas características comuns à literatura de feição realista. Aponte ao menos duas delas, relacionando-as com o conto “O Alienista” e retirando dele os exemplos respectivos.

b) Um dos traços característicos de Machado de Assis, indicados por Lúcia Miguel Pereira, sugere certa distância que há entre sua obra e o caráter naturalista. Indique e descreva essa distância, recorrendo a um dos textos críticos do próprio Machado de Assis para fundamentar sua resposta.

2.  Analise o texto que segue, de Aluísio Azevedo, e responda as questões respectivas:

[...]
Por esse tempo Magdá era acometida por uma explosão de soluços, e chorava copiosamente, o peito muito oprimido.
— Ora até que enfim! rosnou o doutor. E, erguendo-se, soprou para o Conselheiro, a descer as mangas da camisa e da sobrecasaca, que havia arregaçado: — Pronto! Estes soluços continuarão ainda por algum tempo, e depois ela sossegará. Naturalmente há de dormir. O que lhe pode aparecer é a cefalalgia...
— Como?
— Dores de cabeça. Mas para isso você lhe dará o remédio que vou receitar.
E saíram juntos para ir ao escritório.
— É o diabo!... praguejava entre dentes o brutalhão, enquanto atravessava o corredor ao lado do Conselheiro, enfiando às pressas o seu inseparável sobretudo de casimira alvadia. — É o diabo! Esta menina já devia ter casado!
— Disso sei eu... balbuciou o outro. — E não é por falta de esforços de minha parte, creia!
— Diabo! Faz lástima que um organismo tão rico e tão bom para procriar, se sacrifique deste modo! Enfim — ainda não é tarde; mas se ela não casar quanto antes — hum... hum!... Não respondo pelo resto!
— Então o doutor acha que... ?
Lobão inflamou-se: — Oh! o Conselheiro não podia imaginar o que eram aqueles temperamentozinhos impressionáveis!... eram terríveis, eram violentos, quando alguém tentava contrariá-los! Não pediam — exigiam! — reclamavam!
— E se não lhes dá o que reclamam, prosseguiu, — aniquilam-se, estrangulam-se, como leões atacados de cólera! É perigoso brincar com a fera que principia a despertar... O monstro deu já sinal de si; e, pelo primeiro berro, você bem pode calcular o que não será quando estiver deveras assanhado!
— Valha-me Deus! suspirou o pobre Conselheiro, que eu hei de fazer, não dirão?
— Ora essa! Pois já não lhe disse! É casar a rapariga quanto antes!
— Mas com quem?
— Seja lá com quem for! O útero, conforme Platão, é uma besta que quer a todo custo conceber no momento oportuno; se lho não permitem — dana! Ora aí tem!
— Visto isso, o histerismo não é mais do que a hidrofobia do útero?...
— Não! Alto lá! Isso não! A histeria pode ter várias causas, nem sempre é produzida pela abstinência; seria asneira sustentar o contrário. Convenho mesmo com alguns médicos modernos em que ela nada mais seja do que uma nevrose do encéfalo e não estabeleça a sua sede nos órgãos genitais, como queriam os antigos; mas isso que tem que ver com o nosso caso? Aqui não se trata de curar uma histérica, trata-se de evitar a histeria. Ora, sua filha é de uma delicadíssima sensibilidade nervosa; acaba de sofrer um formidável abalo com a morte de uma pessoa que ela estremecia muito; está, por conseguinte, sob o domínio de uma impressão violenta; pois o que convém agora é evitar que esta impressão permaneça, que avulte e degenere em histeria; compreende você? Para isso é preciso, antes de mais nada, que ela contente e traga em perfeito equilíbrio certos órgãos, cuja exacerbação iria alterar fatalmente o seu sistema psíquico; e, como o casamento é indispensável àquele equilíbrio, eu faço grande questão do casamento.
— De acordo, mas...
— Casamento é um modo de dizer, eu faço questão é do coito! — Ela precisa de homem! — Ora aí tem você!
O Conselheiro suspirou com força, coçou a cabeça. Os dois penetraram no gabinete, e o doutor, depois de escrever a sua receita, acrescentou, como se não tivesse interrompido a conversa: — Noutras circunstâncias, sua filha não sofreria tanto... nada disso teria até consequências perigosas; mas, impressionável como é, com a educação religiosa que teve. E com aquele caraterzinho orgulhoso e cheio de intransigências, se não casar quanto antes, irá padecer muito; irá vive em luta aberta consigo mesma!
— Em luta? Como assim, doutor?
— Ora! A luta da matéria que impõe e da vontade que resiste; a luta que se trava sempre que o corpo reclama com direito a satisfação de qualquer necessidade, e a razão opõe-se a isso, porque não quer ir de encontro a certos preceitos sociais. Estupidez humana! Imagine que você tem uma fome de três dias e que, para comer, só dispões de um meio — roubar! Que faria neste caso?
— Não sei, mas com certeza não roubava...
— Então — morria de fome... Todavia um homem, de moral mais fácil que a sua não morreria, porque roubava... Compreende? — Pois aí tem!

(Azevedo, Aluísio. O Homem.
Em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bi000022.pdf)


a) Aponte as características da estética naturalista encontradas no texto acima, indicando trechos que possam servir-lhes de exemplo.

b) Lúcia Miguel Pereira afirma que na obra de Machado de Assis “vive a sociedade brasileira do século passado [XIX]”. Pode-se dizer que a mesma sociedade brasileira vive na obra de Aluísio de Azevedo? Quais as diferenças? Como relacionar essas diferenças às peculiaridades estéticas do realismo e do naturalismo?


   3. Relacione a frase abaixo com a crítica de Machado de Assis ao naturalismo, argumentando e exemplificando com aspectos evidentes nos contos e nas crônicas do autor carioca:

“Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto. [...] A vantagem dos míopes é enxergar onde as grandes vistas não pegam.”
(“A Semana”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 11/11/1897)



Comentários:

1a)
Primeiramente seria interessante reparar nos traços característicos da escola realista referidos no trecho da crítica de Lúcia Miguel Pereira. Como discutimos em sala de aula, Machado de Assis muitas vezes transcende os limites do realismo, não se limitando aos dogmas da escola. O que não quer dizer que não encontremos feições realistas na obra machadiana. Assim, o primeiro dos traços característicos do realismo que encontramos no trecho acima está em sua primeira afirmação: "Nos seus livros vive a sociedade brasileira do século passado [XIX]". Esse é uma das mas importantes características do realismo: retratar criticamente a sociedade contemporânea, que para os escritores realistas era a do século XIX. Era a sociedade oitocentista brasileira, com as trasformações que os avanços técnicos e tecnológicos propiciavam, o alvo fundamental do olhar do escritor realista: o problema da escravidão, que começava a ser sistematicamente combatido; a questão religiosa, que passava a questionar duramente a influência da igreja católica na vida social e política brasileira; a campanha republicana, que refletia os desacertos de um reinado tropical problemático; e diversos outros aspectos, que faziam da organização social brasileira a matéria essencial da reflexão levantada pela literatura realista. Isso justifica o trecho que segue a afirmação citada, de Lúcia Miguel Pereira, que aponta a ausência de "problemas metafísicos" na obra machadiana; ora, a problemática mais candente do momento era, como afirmei anteriormente, social e mesmo sociológica; as inquietações metafísicas (deus, a alma, a morte) haviam se tornado então secundárias (e veremos que ela surgirá na poesia simbolista brasileira). Esse primeiro traço característico, portanto, que revela o olhar atento dos escritores realistas para a sociedade contemporânea, é próprio da escola realista e encontra-se também, obviamente, na produção ficcional (nos contos e romances) de Machado.
O segundo traço característico definidor diz respeito aos personagens, "tipos que deveriam existir", diz Lúcia Miguel. Sabemos que, contrapondo-se à idealização romântica que criou personagens praticamente míticos (como Iracema ou Peri), o realismo manteve os pés no chão no desenho de seus personagens, revelando personalidades que podiam ser observados no cenário da sociedade brasileira. Essa característica, consequência da primeira (analisar a sociedade brasileira contemporânea aos escritores de então), é fundamental para a definição da literatura realista, e foi também, como aliás está afirmado no trecho crítico da questão 1, uma característica da ficção machadiana.
Relacionemos agora esses traços com "O Alienista". A narrativa que conta a trajetória de Simão Bacamarte não é propriamente contemporânea ao momento em que Machado a escreve, ou seja, a narrativa se passa em tempo anterior, tempo que podemos localizar aproximadamente no início do século XIX; mas os aspectos que são alvo da irônica crítica de Machado são evidentemente próprios do momento em que o autor de Dom Casmurro viveu e escreveu sua obra madura: a crítica ao cientificismo, a reflexão sobre o papel da mulher na sociedade brasileira e a sátira acerca dos vícios retóricos e ornamentais no discurso de alguns personagens, como o mesmo Simão Bacamarte, são contundentes no ataque a aspectos da vida sociocultural daquele final de século XIX. Para relacionarmos "O Alienista" ao segundo segundo traço caracterizador antes referido, a presença de "tipos que deveriam existir", não será necessário grande esforço reflexivo; Simão Bacamarte, dona Evarista, o boticário Crispim Soares e o Padre Lopes, entre outros menos proeminentes, são tipos construídos a partir da observação minuciosa de indivíduos existentes no tempo de Machado, tipos que definem modos de convivência e conveniência social própios daquele final de século.
O que podemos apontar como peculiaridade da narrativa machadiana em "O Alienista", e que entra em divergência com os princípios da literatura realista, é a presença de um narrador que se mostra ao leitor em gestos irônicos e humorísticos. Antonio Candido chamou certa vez essa maneira do narrador machadiano de "bisbilhotice saborosa", o que contradiz a objetividade e a impassibilidade que caracterizaram o narrador padrão do realismo. O seguinte trecho vale uma pequena reflexão: "D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro, que posto não fosse sequer uma pálida sombra do que hoje é, todavia era alguma cousa mais do que Itaguaí". Neste pequeno trecho, o narrador demarca sua distância diante do tempo em que a história de Simão Bacamarte transcorre, além de aludir sutilmente às transformações pelas quais passou a cidade do Rio de Janeiro ("pálida sombra do que hoje é"). Outro trecho significativo encontramos no início do capítulo XI, "O assombro de Itaguaí": "E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila...". O narrador machadiano é portanto uma espécie de mestre de cerimônias que apresenta seus convidados (os personagens) ao leitor, deixando sempre transparecer um discreto sorriso sarcástico, marca do olhar crítico de Machado de Assis.

1b)

Este segundo item é mais simples que o primeiro, e espero não estender-me tanto. Dois aspectos apontados por Lúcia Miguel nos fazem relembrar o estratégico distanciamento que Machado de Assis manteve diante dos preceitos da literatura naturalista. O primeiro deles diz respeito às "figuras femininas [...], porejantes de um sensualismo contido"; ora, sabemos que as figuras femininas que o naturalismo criou eram espécies escravizadas por sua própria sexualidade, organismos previsíveis, pois estavam geralmente submetidos ao pretenso determinismo biológico, fatalidade inescapável (ver o texto da questão 2, de Aluísio Azevedo). O segundo aspecto relaciona-se com o primeiro e diz respeito aos personagens machadianos, "tipos que deveriam existir", e não figuras mecânicas que agem de acordo com determinismos fatalistas. A crítica de Machado de Assis a O Primo Basílio traz pontos que se relacionam com os aspectos acima apontados; para o escritor-crítico, a narrativa de Eça trazia "aquela reprodução fotográfica e servil das coisas mínimas e ignóbeis"; o narrador do romance criticado "não esquece nada, e não oculta nada"; e além disso, os episódios do romance queiroziano "tinham o mérito do pomo defeso", ou seja, o mérito do escândalo, do pecado escancarado (o "pomo defeso" como metáfora do pecado original). E creio que basta por ora.

22.11.12

Ecos da Casa Verde

       O trecho abaixo foi retirado de material preparado pela TV Escola, programa Salto para o Futuro. "Machado de Assis: bruxarias literárias" é o título do material, que foi preparado no ano comemorativo de 2008, o Ano Machado de Assis. Refere-se aos desdobramentos artísticos que dialogam com a obra machadiana, mais especificamente a produção cinematográfica, e é parte de um artigo intitulado "Machado de Assis em diálogo com a nossa época", de Victor Hugo Adler Pereira. Vale pela referência a "O Alienista" e o que nele tem conexão com o pensamento contemporâneo, assim como pelo comentário sobre o filme de Nelson Perira e Hugo Sukman, dos mais curiosos e interessantes entre as produções artísticas que dialogam com a obra do Bruxo do Cosme Velho.



"O filme de Nelson Pereira dos Santos e Hugo Sukman, Asylo Muito Louco, lançado em 1970, adaptação de O Alienista, se constituiu num ousado experimento com a linguagem cinematográfica, ao gosto das vanguardas da época. Afinava-se também com a retomada da cultura carnavalesca e das tradições da menipéia, que ganhava terreno no plano internacional desde os movimentos de contracultura e no Brasil, além de ecoar as ousadias do Tropicalismo, e participava também da onda de 'desbunde' diante da repressão política imposta pela ditadura militar. Essa obra, entre outras de Machado, abria caminhos para a discussão sobre a institucionalização do controle sobre a sanidade mental, que vinha sendo liderada pelo movimento da antipsiquiatria, surgido na Inglaterra nos anos 60, e que viria a se expandir nos anos 70 e 80 através dos estudos de Michel Foucault. Desde então, no Brasil, muitas leituras críticas da obra de Machado de Assis tomaram esse viés libertário, destacando o modo com que o autor – vítima da epilepsia e que tantos preconceitos teve que vencer diante desse fato – conseguiu analisar as sutilezas com que são construídos, mantidos e utilizados os mecanismos de controle, exploração ou manipulação dos chamados 'desvios' da norma psicológica – o que se revela de modo marcante no romance Quincas Borba."