28.3.12

A crítica de Machado de Assis, por Paulo Franchetti

       [...]
       O artigo de Machado se organiza de modo a apontar os defeitos de O Primo Basílio a partir de dois ângulos principais. Por um lado, vê nessa obra uma realização de uma tendência literária que não merece a sua aprovação: o realismo de [Émile] Zola. Ou, como diríamos hoje, o Naturalismo. Por outro lado, considera que o livro tem defeitos de concepção e de realização, sejam na forma de construir as personagens, seja na forma de compor a trama, seja ainda na maneira de conduzir a narração.
       Machado inicia o texto constatando que o livro de Eça [de Queirós] fazia grande sucesso, e justifica esse sucesso apresentando duas razões. Por um lado, dizia o escritor brasileiro, era uma questão de moda: O Primo Basílio era a tradução, para o português, do receituário naturalista, que já fazia sucesso na França. Por outro lado, o gosto do público moderno estava muito rebaixado e a literatura grosseira do Naturalismo o atendia perfeitamente.
       [...]
       [...] De fato, é patente no texto um esforço de combate à narrativa naturalista, que Machado entende aqui como uma narrativa que favorece a descrição e a notação sensual em prejuízo da análise das paixões e da complicação lógica do enredo. A crítica de Machado se processa, assim, a partir de uma concepção de romance que é oposta à que ele identifica no texto de Eça e que ele mesmo tentava pôr em prática no seu Iaiá Garcia [romance de 1878]: o bom romance é o que investe na construção de personagens complexas, movidas por paixões e motivações morais que garantam o interesse dos desdobramentos da narrativa. O que Machado combate assim, em O Primo Basílio, não é apenas uma específica realização literária, mas também, tendo em mente o sucesso de público do livro de Eça, a possível influência do estilo naturalista sobre a jovem literatura brasileira. [...]
       [...]

[FRANCHETTI, Paulo. "O Primo Basílio". In: _______. Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa. São Paulo: Ateliê, 2007. pp. 143-145; a ilustração é charge de Rafael Bordalo Pinheiro, para o periódico ilustrado O Besouro, de 1878, e representa parte da repercussão de O Primo Basílio na imprensa brasileira.]

24.3.12

para relembrar um amigo: Ericson Pires

faz uma semana que a notícia chegou, absurda: o Ericson morreu! realmente absurda! como acreditar que aquela figura enérgica desapareceria assim, num quarto de hospital, sem um último passeio pela cidade que o constituia e um último abraço nos amigos desatentos. absurda, mas insistente em sua verdade inconsequente. pra fazer dançar um pouco a memória em luto, eis uma pequena composição do Ericson, retirado do seu livro cinema de garganta (azougue editorial, 2002).

papel reciclado

O poeta é um
catador

senões incrustados

peito que brilha

papelão e garrafas

nu mar
de palavras

23.3.12

Machado de Assis no espelho da crítica: Augusto Meyer

Segundo Alfredo Bosi, a crítica produzida entre 1930 e 1950 sobre a obra machadiana tem em Augusto Meyer (1902-1970) um de seus representates fundamentais. "Atento aos mínimos movimentos da escrita, Meyer desenhou o mapa interno da mina onde ainda hoje escavam os melhores leitores de Machado" (Bosi, 2002, p. 11). E, entre os textos críticos de Meyer, encontramos uma análise de "O espelho", conto fundamental do escritor carioca, estampado em Papéis avulsos, de 1882. Abaixo seguem alguns trechos dentre os mais instigantes dessa análise:

"Realidade? A si mesmo? Quando o narrador desce as escadas, fim do conto, as interrogações sobem na perplexidade do leitor. E não é para menos. 'O espelho' é um dos momentos mais vertiginosos na obra de Machado de Assis. O humorismo cáustico do princípio, a acrobacia machadiana de Jacobina aos expor a sua tese das duas almas, contrasta profundamente com a gravidade simples da história contada por ele. O próprio ambiente prepara essa impressão, pela sugestão visual de uma claridade dúbia, fantástica, a de um sonho vagamente sonhado por nós, na penumbra de outra vida" (Meyer, 1986, p. 209).
"Sim, pensando bem, Jacobina é isso mesmo: 'uma fantasia graduada em consciência'. A farda, a alma exterior, alma exterior, tomou conta do espírito. O homem se fez manequim agaloado e faceiro, sombra de si mesmo, paródia da verdadeira alma. Esta, coitada, está lá dentro, encolhida, abafada pela farda, sem voz ativa -- porém subsiste como a própria essência da vida que não se vê com os olhos da carne.
Ora, Jacobina somos nós. Botamos a farda e representamos uma paródia do nosso eu autêntico -- não na vida social apenas, na vida profunda do espírito, que anda quase sempre fardado. O imperativo do instinto vital se encarrega de fardar o espírito para que ele não se veja no espelho tal como é na verdade. Só existem as almas exteriores, bovarizadas, mascaradas, e para elas, que só navegam na sabedoria da superfície, é melhor não sondar a profundidade terrível do homem. quem tira a farda, quem tenta ver o que há além da fantasmagoria organizada em seu proveito pela inconsistência vital, sente a vertigem de si mesmo e de tudo, acaba falando sozinho diante do espelho, como o Alferes Jacobina" (idem, p. 210-211).



[referências bibliográficas: BOSI, Alfredo. Machado de Assis. São Paulo: Publifolha, 2002;
MEYER, Augusto. Textos críticos. Seleção e introdução de João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1986]

13.3.12

"Rondó do Capitão", de Manuel Bandeira

o poema é de Manuel Bandeira, "Rondó do Capitão", do livro Lira dos Cinqüent'anos (1940).
musicado por João Ricardo, faz parte do primeiro álbum dos Secos e Molhados (1973).
a voz, inconfundível, é do vocalista do grupo, Ney Matogrosso.
confiram no endereço abaixo:

http://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=RIahEgsVL64

12.3.12

poesia expressionista alemã: Gottfried Benn

     Síntese



          Noite silenciosa. Casa silenciosa.
          Mas sou a mais calma estrela,
          Eu também produzo luz própria
          Além dos limites de minha noite.

          Cerebralmente, voltei para casa
          De infernos, céus, lixo e gado
          E também o que se concede à mulher
          É obscura e doce masturbação.

          Revolvo o mundo. Agonizo a presa.
          E depois dispo-me na alegria:
          Não há morte, nem pó malcheiroso
          Que me leve, eu-conceito, de volta ao mundo.



[tradução Claudia Cavalcanti]
[ilustração Max Kaus]

blog dos bons

ontem passeando encontrei um dos bons blogs, creio que dos melhores, o blog da Revista Macondo ("blog da macondo": http://revistamacondo.wordpress.com/). vale a conferida: "Chapolin Colorado e a literatura" é o título da postagem de hoje.

10.3.12

Fortuna crítica de Machado de Assis

Diógenes procurava um homem. Este Palhaço de Classe procura apenas um leitor interessado, o que talvez já será muito. Aqueles (leitores interessados) que acaso por aqui passarem, interessados em referências de estudos fundamentais (e interessantes) acerca da obra de Machado de Assis, visitem o site dos Cadernos de Literatura Brasileira, editados pelo Instituto Moreira Salles, que têm seus números 23/24 dedicados ao criador de Capitu e Bentinho. O site disponibiliza parte do material publicado em edição impressa, e a seção "Memória seletiva" já vale a visita pelas indicações bibliográficas que faz. http://ims.uol.com.br/hs/clb/clbmachado/clbmachado.html

como uma profissão de fé do cronista, por Machado de Assis

     Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto. Daí vem que, enquanto o telégrafo nos dava notícias tão graves como a taxa francesa sobre a falta de filhos e o suicídio do chefe de polícia paraguaio, cousas que entram pelos olhos, eu apertei os meus para ver cousas miúdas, cousas que escapam ao maior número, cousas de míopes. A vantagem dos míopes é enxergar onde as grandes vistas não pegam.
       [...]
(Machado de Assis. Crônica de 11 de novembro de 1900.)

8.3.12

Sobre a crônica, para pensar Machado de Assis

 
    
      "[...]
     Retificando o que ficou dito atrás, ela [a crônica] não nasceu propriamente com o jornal, mas só quando este se tornou quotidiano, de tiragem relativamente grande e teor accessível, isto é, há pouco mais de um século e meio. No Brasil ela tem uma boa história, e até se poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela maturidade com que se aclimatou aqui e a originalidade com que aqui se desenvolveu. Antes de ser crônica propriamente dita foi 'folhetim', ou seja, um artigo de rodapé sobre as questões do dia -- políticas, sociais, artísticas, literárias. Assim eram os da seção 'Ao correr da pena', título significativo a cuja sombra José de Alencar escrevia semanalmentee para o Correio Mercantil, de 1854 a 1855. Aos poucos o 'folhetim' foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar de quem está escrevendo à toa, sem dar muita importância. Depois, entrou francamente pelo tom ligeiro e encolheu de tamanho, até chegar ao que é hoje.
     Ao longo deste percurso, foi largando cada vez mais a intenção de informar e comentar (deixada a outros tipos dejornalismo), para ficar sobretudo com a de divertir. A linguagem se tornou mais leve, mais descompromissada e (fato decisivo) se afastou da lógica argumentativa ou da crítica política, para penetrar poesia adentro. Creio que a fórmula moderna, na qual entra um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma.
     No século passado, em José de Alencar, Francisco Otaviano e memo Machado de Assis, ainda se notava mais o corte de artigo leve. Em França Júnior jé é notada uma redução da escala nos temas, ligada ao incremento do humor e certo toque de gratuidade. Olavo Bilac, mestre da crônica leve e aliviada de peso, guarda um pouco do comentário antigo, mas amplia a dose poética, enquanto João do Rio se inclina para o humor e o sarcasmo [...]."

(CANDIDO, Antonio. "A vida ao rés-do-chão". In: _____. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. pp. 24-5. Ilustra esta postagem "A lavadeira", pintada por Honoré Daumier em 1860.)

A República das Letras segundo Machado de Assis: a crítica


     Machado de Assis – um crítico malogrado?
– entre duas famílias espirituais de escritores: criadores e críticos (a verve e o gosto);
– “O gênio literário é aquele que se move indistintamente nos dois terrenos e em ambos se sente perfeitamente à vontade.” (Tristão de Ataíde).
    
     O ideal do crítico no alvorecer de sua vida literária:
– padrão que guiou toda a produção crítica subsequente de Machado;
– a crítica como “um dos poderes na República das Letras” (poder judiciário).
    
     As qualidades necessárias para a atividade crítica e as suas chagas:
– ciência, urbanidade, consciência, perseverança, coerência, tolerância, independência e imparcialidade;
– “as três chagas da crítica de hoje: o ódio, a camaradagem e a indiferença”.
    
     Crítico malogrado ou gênio literário?
– entre um temperamento de tímido e as exigências da crítica como magistratura literária;
– “Que fez? Fundiu o crítico no romancista.” (Tristão de Ataíde).

Obs.: “Para Machado o Poder Legislativo, nessa República, era representado pelos Clássicos, pela Tradição, pelas ‘leis poéticas’, pela Gramática. O Poder Executivo eram os autores, em prosa ou verso. E o Poder Judiciário, os críticos.” (Tristão de Ataíde, p. 780)

[Nota de aula sobre a produção crítica de Machado de Assis, ministrada na disciplina Literartura Brasileira II. Os trechos citados de Tristão de Ataíde foram retiradas de "Machado de Assis, o crítico", introdução aos textos enfeixados sob o título "Crítica", do volume 3 das Obras completas de Machado de Assis, editora Nova Aguilar (1997).]

7.3.12

Machado de Assis: curiosidades cronológicas

Quando publicou, em março de 1873, a "Notícia da atual literatura brasileira -- instinto de nacionalidade" na revista Novo Mundo, de Nova York, Machado de Assis apenas iniciava sua projeção na vida literária nacional; publicara um único romance, Ressurreição, primeiro dos nove que o consagrariam como romancista maior de nossas letras; publicara os Contos fluminenses três anos antes, e no mesmo ano de 1873 sairiam a lume as Histórias da meia-noite; dera ao público os versos estampados em Crisálidas (1864) e Falenas (1870), e depois de dois anos da publicação do famoso ensaio crítico, Machado publicaria seu terceiro livro de composições líricas, as Americanas (1875), que nos apresenta uma poesia narrativa, tratando entre outras de temáticas indianistas (atritos entre índisos e brancos). Que curiosidades ou relações significativas podemos perceber por trás destas datas?

pensamentos machadianos para o momento

"Eu, apesar do pessimismo que me atribuem, e talvez seja verdadeiro, faço às vezes mais justiça à Natureza do que ela a nós. Não posso negar que ela respeita alguns dos melhores, e estou que os fere por descuido, mas logo se emenda e põe bálsamo na ferida."
(Carta a Salvador de Mendonça. Rio de Janeiro, 19.8.1903)

"É preciso que o crítico seja tolerante, mesmo no terreno das diferenças de escola: se as preferências do crítico são pela escola romântica, cumpre não condenar, só por isso, as obras-primas que a tradição clássica nos legou, nem as obras meditadas que a musa moderna inspira; do mesmo modo devem os clássicos fazer justiça às boas obras dos românticos e dos realistas, tão inteira justiça, como estes devem fazer às boas obras daqueles."
("O ideal do crítico". Diário do Rio de Janeiro, 08.10.1865)

5.3.12

Augusto dos Anjos por Charles Baudelaire

A figura de Augusto dos Anjos (1884-1914), poeta paraibano que representa uma das forças máximas, na produção poética, do momento de preparação da chamada "revolução modernista", é constantemente evocada pela leitura que fazemos de alguns de seus versos. Logicamente que nesta leitura entra certo sabor romântico: o de encontrar na fisionomia do escritor traços característicos equivalentes à produção literária do mesmo. O poeta paraibano do Eu (1912), que Alfredo Bosi qualifica como sendo "romântico lato sensu", dificilmente escaparia a esse tipo de leitura -- seja por sua aparência patética marcante, seja por sua poesia peculiaríssima no momento pré-modernista. O fato é que o depoimento de Orris Soares, amigo de Augusto dos Anjos, nos remete a uma imagem que figura em um dos poemas de Charles Baudelaire, "O Albatroz". Ouçamos primeiramente o depoimento de Orris Soares e, na sequência, as palavras sugestivas do poeta francês que revolucionou a poesia ocidental em meados do século XIX (Le fleurs du mal é de 1857).

"... de magreza esquálida, -- faces reentrantes, olhos fundos, olheiras violáceas e testa descalvada. A boca fazia a catadura crescer de sofrimento, por contraste do olhar doente de tristura e nos lábios uma crispação de demônio torturado. [...] Os cabelos pretos e lisos apertavam-lhe o sombrio da epiderme trigueira. A clavícula, arqueada. Na omoplata, o corpo estreito quebrava-se numa curva para diante. Os braços pendentes, movimentados pela dança dos dedos, semelhavam duas rabecas tocando a alegoria dos seus versos. O andar tergiversante, nada aprumado, parecia reproduzir o esvoaçar das imagens que lhe agitavam o cérebro. [...] um pássaro molhado, todo encolhido nas asas, molhado de chuva" (Soares, Orris. "Elogio de Augusto dos Anjos).


Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.

Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,
O monarca do azul, canhestro e envergonhado,
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.

Antes tão belo, como é feio na desgraça
Esse viajante agora flácido e acanhado!
Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!

O Poeta se compara ao príncipe da altura
Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
Exilado no chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar.

 (Charles Baudelaire. Tradução de Ivan Junqueira)

4.3.12

Realismo e contestação: Courbet





"Gustave Courbet seria o inventor da arte moderna, pelo fato de dirigir-se diretamente ao público, menosprezando o papel legitimador dos poderes acadêmicos. [...] Ao organizar a sua contraexposição em 1855, Courbet nega o poder da instância legitimadora [ou seja, o juri do Salão de Paris], embora não desconheça estar sujeito à lei da concorrência e à necessidade da publicidade. A questão do novo e, portanto, a ideologia da arte como ruptura derivam desse processo de contestação, inaugurado por Courbet e levado adiante pelos independentes [...]."



(Fabris, Annateresa. "Modernidade e vanguarda: o caso brasileiro". In: _____ (Org.). Modernidade e modernismo no Brasil. Porto Alegre: Zouk, 2010. p. 12. A imagem que ilustra esta postagem é de Gustave Courbet, o polêmico quadro intitulado L'Origine du monde, de 1866)